A justiça é hoje mais respeitada pelos portugueses. A consolidação da ideia de que não funciona só para alguns é, sem dúvida, uma das suas maiores vitórias dos últimos anos. E para isso contribuíram alguns megaprocessos como o Monte Branco, o Marquês, as investigações ao universo BES e, mais recentemente, os casos Fizz e Lex – no primeiro, um ex-procurador do DCIAP está a ser julgado por ser suspeito de receber subornos de Manuel Vicente, e no segundo, que está ainda em fase de inquérito, investigam-se dois juízes desembargadores (Rui Rangel e Fátima Galante) e outras personalidades como o presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira.
Mesmo que nem sempre com um desfecho célere, estes processos deram e continuam a trazer esperança. Fazem crer nas instituições e reforçam o sentimento de que todos são iguais perante a lei.
Mas, em contraciclo com esta justiça que parece ser cada vez mais justa, têm surgido resquícios de outros tempos. Depois de algumas decisões em que juízes fizeram comentários despropositados sobre vítimas de violência doméstica, surge agora um caso em que um juiz autorizou que um julgamento por desvio de dinheiro acontecesse à porta fechada – algo que, senão inédito, é muito pouco comum na democracia portuguesa.
E não, não estou a falar do caso em que foi condenado um espião do SIS por vender dados a um agente russo e em que a publicidade do julgamento poderia pôr em causa a segurança nacional e dos Estados-membros da NATO. Estou a falar de um caso de desvio de dinheiro em que um juiz aceitou fechar as portas da sala de audiência aos cidadãos e aos jornalistas para se preservar a honra do reitor da Universidade Fernando Pessoa, Salvato Trigo – acusado do apoderamento de, pelo menos, três milhões de euros.
O caso, denunciado pelo “Público”, é no mínimo caricato, até porque não se compreende como a transparência de um julgamento pode atentar contra a honra de uma pessoa, e a opacidade de uma porta fechada preservá-la.
A defesa do reitor alegou que um julgamento normal, ou seja, público poderia acarretar danos para o prestígio de Salvato Trigo, uma “personalidade de reconhecido mérito e prestígio no meio universitário nacional e internacional”. É justificado que a acusação é “um atentado da sua honorabilidade profissional e pessoal, bem como do seu bom nome”.
Mas a pergunta que se coloca é: e se um dia este resquício de opacidade voltar a fazer escola nos tribunais? A sociedade aceitará que, por exemplo, José Sócrates, Ricardo Salgado ou Armando Vara sejam julgados à porta fechada?
É que os fundamentos apresentados pela defesa de Salvato Trigo, segundo o mesmo diário, e aceites pelo juiz, encaixam perfeitamente nos megaprocessos que visam políticos, banqueiros e outras individualidades.
“Os factos submetidos a julgamento [ou seja, o alegado desvio de dinheiro] poderão ter repercussão mediática, o que necessariamente terá um efeito nefasto no normal funcionamento da Universidade Fernando Pessoa e hospital-escola”, sustentou a defesa de Salvato Trigo – que está ainda a ser alvo de uma outra investigação iniciada em 2015 por fraude fiscal.
O caso teve pouca repercussão na imprensa, mas a gravidade desta exceção deve preocupar a justiça e o país.
Basta ver o art.o 321.o do Código do Processo Penal para se perceber que a audiência é, em regra, pública, havendo naturalmente exceções previstas. Casos como abusos sexuais, nomeadamente de menores, merecem ser tratados longe dos holofotes, o mesmo se podendo dizer de situações em que está em causa a segurança nacional. Aliás, o art.o 87.o deixa claro que a restrição de publicidade deve fundar-se em factos ou circunstâncias concretas que façam presumir que a publicidade causaria graves danos à dignidade das pessoas, à moral pública ou ao normal decurso do ato.
Se se aceitar o entendimento de que o julgamento de um reitor por desvio de verbas se insere nas exceções à regra da publicidade (e tendo em conta apenas os fundamentos que saíram na imprensa), terá de se aceitar que a maioria dos processos a envolver personalidades devem ser julgados a sete chaves.
Jornalista