Querem mesmo falar do país que temos?


Há o princípio e há a realidade


Os princípios são os do conjunto de normas que compõem o Estado de direito democrático; a realidade é que nenhum cidadão, por mais impoluto que esteja, pode estar descansado quanto a não ver a sua reputação enlameada, só porque houve uma denúncia anónima, porque a justiça está para ali virada ou porque o sistema judicial resolveu fazer uma triagem arbitrária em função do interlocutor para investigar, enquanto alerta a comunicação social. Uns processos avançam, outros marinam.

O princípio é que os processos judiciais estão em segredo de justiça; a realidade é que, entre os agentes da justiça e os jornalistas, as conivências e as fugas de informação são mais que muitas para configurarem condenações sumárias na praça pública e venderem jornais. E, glória das glórias dos desmandos, é ver os altíssimos moralismos dos média em relação a um caso concreto, quando diariamente têm práticas reiteradas de violação do segredo de justiça. Ah, há o direito de informar.

Deve ser o mesmo que há mais de um ano tem mantido em sarcófagos os nomes dos jornalistas avençados do saco azul do GES ou que condena pequenos desmandos dos políticos com agentes económicos, mas absorve as viagens à borla para realização de “peças jornalísticas” ou as notícias à medida de determinados interesses, estratégias e movimentações económicas. É vê-los atirarem as primeiras pedras como se não fosse nada com eles. Nem as mãos se vêm, mas as assinaturas estão lá todas nas entrelinhas.

As mesmas pedras que configuram uma sociedade com um forte traço entre a inveja e o bitaite fácil, como o comprova a celeuma gerada em torno da ida de um ex-primeiro-ministro para uma instituição do ensino superior para dar aulas, após a saída da política ativa.

Sendo verdade que ninguém vai para a política obrigado, quantos têm noção do que implica o exercício de cargos públicos de representação política a tempo inteiro quando levados a sério, por obrigação ou por vontade própria? Alguém sabe que não há 35 ou 40 horas que lhes valham? Alguém tem noção da disponibilidade de tempo e de quilómetros percorridos? Alguém sabe que quase não há vida familiar? Alguém sabe quanto vale não estar presente em quatro ou cinco anos de crescimento de um filho? A verdade é que muitos dos que falam não têm pingo de noção nem nunca terão, porque esgotam o seu exercício cívico no bitaite inconsequente. Alguns nem votam, mas criticam, espumam e engrossam os espasmos pseudocívicos nas redes sociais. Outros reproduzem de forma acéfala as narrativas distribuídas ou os dislates digitais.

Este desdém em relação à experiência acumulada é o mesmo que se manifesta na falta de valorização daqueles que têm anos de vida política, profissional e cívica, mas são descontinuados do crédito comunitário e de mínimos de respeito individual.

Destas comoções coletivas em torno da classe política perpassa um certo gostinho especial de alguns portugueses em serem enganados. Indignam- -se quando um político procura trabalho depois do exercício de funções públicas, mas amocham com a gestão dos pecúlios dos que amealharam enquanto estiveram no poder. Este país não é para sérios, rigorosos ou exigentes. Este é o país em que, com demasiada frequência, se prefere o esquema à linearidade, à transparência e à previsibilidade. É claro que, com tamanha força dos bitaites nos dias que correm, tudo será diferente se os que “bitaitam” sobre quem esteve ou quem está, sem nunca terem mexido uma palha que não fosse a do linguajar volátil, se chegarem à frente num impulso cívico sem par.

Então perceberão que, lá por votarem de quatro em quatro anos, devem manter escrutínio e exigência durante o exercício dos mandatos. Porque a democracia representativa precisa da participação cívica e política permanente.

Então perceberão que o exercício de funções públicas é, por regra, exigente e deve ter mínimos de reconhecimento cívico, quaisquer que sejam as convicções políticas e ideológicas. Há mínimos em que nenhuma ofensa é aceitável, porque incompatível com a esfera de liberdade do outro.

Então perceberão que a diferença de opinião é uma expressão normal do pulsar democrático, que não deve ser invetivada como tendo subjacente um qualquer segundo sentido, mas o tolerante exercício de pensamento próprio.

Enquanto não for assim, continuaremos a ter um país desequilibrado, injusto e sem um sentido de cidadania que não esbarre nos minimalismos, nas tentativas de contornar as normas ou numa miserável separação entre os de primeira e os de segunda.

Há demasiada geometria variável.

Há demasiada falta de vergonha na cara.

Há demasiadas análises segmentadas para que não se veja a floresta ou que qualquer situação tem riscos e oportunidades.

Enquanto estivermos no domínio dos retratos instantâneos e da volatilidade, dos compromissos com o dia de hoje, com os umbigos e com o circunstanciais, “I’m done”. E, por mais que custe a alguns, é por opção própria que não estamos na política ativa, em funções executivas, desde logo, na autárquica. É uma questão de sanidade e higienização política.

Outros que mostrem o que valem!

NOTAS FINAIS

NÃO SE AGUENTA. Queixam-se da falta de água. Queixam-se da chuva e do vento. É a síndrome do “não se governa nem se deixa governar”. Venha de lá essa chuva que faz muita falta em terra e no mar.

VAI SENDO TEMPO. Os fenómenos meteorológicos extremos só sublinham a necessidade de incorporarmos o risco nas nossas vidas, aprendermos com os erros do passado no ordenamento do território e agirmos na valorização do território. Mas também sublinham a necessidade de clarificar que tipo de apoio o Estado presta nesses momentos e de agilizar os processos de apoio e reposição da normalidade.

 

Militante do Partido Socialista, Escreve à quinta-feira