É preciso acabar com esta “mamadeira”…


A mulher tem o direito de amamentar, não o dever; tem a opção, não a obrigação. As vantagens do aleitamento, inegáveis, não são tão relevantes quando não há situações alérgicas


São cada vez mais os casos de crianças a quem, em caso de separação dos progenitores, é negada a guarda conjunta e a pernoita partilhada com o pai “porque estão a ser amamentadas” – é uma mentira científica, uma manipulação descarada e uma indecência social… pior ainda é o silêncio à volta desta questão de quem teria a obrigação de se indignar, designadamente as pessoas que, como eu, defendem a igualdade de direitos de género.

Durante muitos anos fui quadro da DGS, corresponsável pelos programas de Saúde Infantil, designadamente pelo programa de promoção do aleitamento materno. O mesmo aconteceu quando fui presidente da Secção de Pediatria Social e Comunitária da Sociedade Portuguesa de Pediatria e, na União Europeia, consultor da DG V, que supervisionava os programas de saúde pública pediátrica nos países da UE. Fui, aliás, o coordenador do estudo “Aleitamento materno – estudo em seis distritos do Continente”, da DGS, um estudo muito vasto que procurou saber as causas de abandono da amamentação para as corrigir e ultrapassar.

Que fique pois bem claro que sou um defensor do aleitamento materno, mas que todavia, como em tudo na Saúde Pública, esta peça é apenas uma no enquadramento das diversas necessidades irredutíveis da criança.

A amamentação é o método natural de alimentação do bebé pequeno mas, mesmo sem ser em casos de separação, uma mulher tem o direito de amamentar, mas não o dever, tem a opção, e não a obrigação. Assim, as vantagens do aleitamento, embora inegáveis, não são tão relevantes quando não há situações alérgicas, quando a criança é confrontada com estímulos diversos (além dos inúmeros que recebeu durante a gestação), e o mesmo se refere aos anticorpos ativos que, a partir dos 6 meses, o bebé desenvolve no contacto diário que tem com microrganismos, acompanhando o decréscimo acentuado dos anticorpos passivos herdados da mãe, mesmo que esteja a ser amamentada.

Felizmente, no puzzle que é a qualidade de vida de uma criança, na sociedade portuguesa atual, a dimensão da peça “amamentar” não tem a mesma grandeza do que se estivéssemos há algumas décadas em Portugal ou, atualmente, num qualquer país menos desenvolvido onde não há água potável, condições sanitárias nem sequer supermercados onde encontrar latas de substitutos do leite materno.

Por outro lado, o próprio puzzle de vida das mulheres da nossa sociedade não se resume a ser “mães em exclusividade”, nem o deverá ser porque, em famílias de escassos filhos, corre-se o risco de se gerar alguma “claustrofobia” materna sobre a criança, com efeitos inibidores sobre o seu percurso de crescimento, dado que a maioria das mães não antecipa nenhum “bebé seguinte”, custando-lhes muito fazer o “luto” do bebé presente, e por isso prolongando quase infinitamente os símbolos de “ter um bebé nos braços”.

Infelizmente, são cada vez mais os casos de que tenho conhecimento em que o argumento “estou a amamentar”, como há anos era o “veio de casa do pai e tem o pipi assado”, é avançado como mentira para impedir uma responsabilidade parental conjunta e uma vivência residencial partilhada, excluindo liminarmente o pai da vida da criança durante muitos meses ou até nos dois ou três primeiros anos de vida. Há profissionais que têm a “lata” de dizer que “até aos 3 anos o pai é meramente um espectador” ou que, como li há dias num parecer, “é o período necessário para a mãe apresentar a criança ao pai”. Está tudo doido?

Este argumento da amamentação, ou seja, de que “o filho é meu”, curiosamente não falada nem mencionada como inaceitável, porque indecente, pelos movimentos feministas ou por pessoas que tanto se preocupam com as chantagens que alguns homens fazem sobre as mulheres, é uma fraude. Sim, uma fraude e uma falácia. Qualquer criança pode ser alimentada com substitutos do leite materno – não quer isto dizer (que fique aqui bem claro) que eu o defenda como prioridade. Mas… por amor de Deus! Quando se coloca nos pratos da balança, num lado o dar de mamar, no outro “ter pai” e conviver com ele desde os primeiros tempos, em “doses” justas, repartidas, em igualdade de direitos e de deveres, obviamente que a escolha do bom-senso e de qualquer pediatra, psicólogo ou juiz, na minha opinião e salvo fatores escabrosos que já entrem na esfera dos impedimentos judiciais, deve ser a criança estar com ambos e ser alimentada de outro modo. Aliás, a maior autoridade neste assunto, a Sociedade Europeia de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátricas é bem clara: a partir dos 4 meses pode iniciar-se, sem qualquer problema, a diversificação alimentar com outros alimentos, como os purés de legumes, a carne e a fruta, e rapidamente depois o peixe, o iogurte, etc. além de prever o uso dos substitutos do leite materno.

Os pais representam polos diferentes no desenvolvimento pessoal, relacional e social da criança: são vertentes complementares, sendo imperativo um equilíbrio entre os dois – daí não se poderem colocar, pai e mãe, como alternativas, mas sim como dois elementos essenciais ao desenvolvimento harmonioso, integral e completo da criança.

Ao objetivamente privar-se a criança, de qualquer idade, de um contacto real e sólido com o pai, não por incompetência ou desinteresse deste, mas por uma argumentação baseada no facto de, supostamente, a criança estar a ser amamentada, esta é uma vítima, sofre, fica restringida num dos seus direitos essenciais e pode estabelecer com a mãe uma relação de tipo patológico, favorecedor de insegurança, reações narcisistas relacionadas com o medo de crescer. A resiliência e assertividade das pessoas organiza-se e estrutura-se durante toda a vida, e para elas é determinante a figura do pai. E já nem falemos na possibilidade das mães poderem extrair o leite e guardá-lo durante meses e poder entrega-lo ao pai quando a criança está com ele.

Uma criança que é impedida de ter um pai que a vai acordar com um miminho ou que a adormece com uma história, que é um farol fundamental no seu percurso de vida, pela argumentação de que “está a ser amamentada”, está a ser objetivamente maltratada, e não me coíbo de usar a palavra sem aspas. Idem para esse pai, que pode ser um péssimo marido, mas que não é por isso que tem de ser penalizado como pai.

O tempo das crianças não é o tempo dos adultos. Cada dia que passa numa situação iníqua, desigual, injusta e injustificável, responsabilizará todos os que a promovam e não contrariem pelos efeitos deletérios que terá no percurso de vida das crianças, que têm o direito inalienável de serem protegidas, conforme o afirma a Convenção sobre os Direitos da Criança. Se não forem os profissionais, a sociedade, a Justiça e a ética os garantes da sua defesa, quem será? Ou é preciso um movimento estilo “me too” para que as pessoas abram os olhos?

 

Pediatra

Escreve à terça-feira