Açucena. O adeus à rainha do mercado

Açucena. O adeus à rainha do mercado


Era conhecida como ‘a peixeira dos chefs’, mas classificá-la desta forma seria redutor. Açucena era a peixeira do mercado, a peixeira de Arroios e a peixeira de quem vinha de longe para levar para casa o peixe mais fresco da cidade. Açucena morreu a semana passada mas será sempre a peixeira de Lisboa


Foi numa ida ao Aron Sushi que percebemos que, até àquele dia, andávamos bem enganados. Sushi afinal não é feito de bolas de arroz demasiado grandes, nem de peças envoltas em polmes fritos e toppings que estavam bem era numa torre de panquecas. Tão-pouco é feito apenas de atum e salmão e, neste restaurante em particular, são tantas as formas de trabalhar o peixe que somos obrigados a chamar o chef à mesa para decifrar as espécies. «Aqui temos pargo, robalo, dourada, polvo, lula e toro, a parte mais gorda do atum”, aponta Aron Vargas, que decidiu ampliar o seu negócio em 2016, para abrir um novo espaço no Mercado 31 de Janeiro.

Feitas as apresentações, hora de degustar. E é exatamente no momento em que levamos à boca a primeira peça que percebemos que tínhamos o paladar ludibriado pelos mal fadados ‘all you can eat’. 

Se para as explicações Aron se chegou à frente, para os louros, fez questão e chamar ao restaurante a fonte daquele repasto.

Açucena chegou, de avental vestido, luvas postas e sorriso aberto. «Estão a gostar? É do mais fresquinho que há!», garantiu.

Todo o peixe que Aron serve vem da banca de Açucena Veloso e este é um ritual repetido pelos mais consagrados chefs da nossa praça. Até porque praça, neste caso, mercado, era com ela.

Veio de Braga ainda criança e com nove anos já vendia limões no Mercado 31 de Janeiro. Um dia, a peixeira Laurinda Lisboa precisou de uma mãozinha e foi Açucena quem lha deu. Aprendeu a amanhar o peixe, especializou-se nos pregões e abriu a sua própria banca, sem saber que 55 anos depois, não só se mantém aberta, como passou de um balcão de apenas um metro para uns atuais 23.

Quem por lá passar agora já não vai ver esta figura de metro e meio e sorriso aberto a liderar uma equipa de 14 pessoas. Açucena morreu domingo, aos 65 anos, num despiste do automóvel que conduzia na zona de Corroios. Consigo levou os pregões, o tal sorriso aberto e a força que ajudou a levantar um mercado quase ao abandono. Levou isso tudo, mas deixou um nome que pode vir a ficar eternizado no mercado a que chamava de casa. A Associação dos Comerciantes nos Mercados de Lisboa (ACML) vai propor à Câmara que o Mercado 31 de Janeiro passe a ser ‘Mercado Açucena Veloso’. O b,i. falou com Luísa Carvalho, presidente da ACML, para quem esta mudança faz todo o sentido, uma vez que «já um outro mercado em Lisboa, o de Alcântara, foi rebatizado com o nome de uma antiga peixeira, Rosa Agulhas».

A peixeira de todos

O Chef Kiko partilhou no Facebook as saudades que ia ter de Açucena, Alexandre Silva, do restaurante Loco, lembrou «um coração cheio de amor» e Miguel Castro e Silva escreveu sobre «uma fonte inspiradora que tratava os cozinheiros por tu».

Era conhecida por toda a Lisboa como a ‘peixeira dos chefs’ mas, na verdade, Açucena não fazia distinção na hora de servir bem. «É até injusto reduzi-la a essa designação», considera Luísa Carvalho, lembrando os vários episódios em que a viu encher o saco de quem não tinha dinheiro para pagar a conta. «O preço nunca era fixo, ou melhor, ela sabia o que cobrar a cada cara que por lá aparecia», explica. Não foram raras as vezes que a viu pedir dois ou três euros – «nunca mais de cinco» – por um saco que valeria no mínimo dez euros, ou «juntar mais umas quatro postinhas de pescada» a quem adivinhava uma carteira vazia.

Apesar de estas serem histórias contadas no passado, a banca de Açucena já voltou ao ativo e promete manter-se ao nível de quem a criou. E enquanto não houver homenagem oficial, a minha vai ser ir lá hoje comprar salmão. É que naquele dia que lhe elogiei o peixe cortado em sashimi, Açucena não me deixou ir embora sem uma dica. «Faça-o no forno, com limão e alecrim. Vai ver que fica uma maravilha!». J