Marcelo 2.0 e o clientelismo carismático


O demagogo telepopulista é, de certo modo, uma nova representação histórica do salvador da pátria, reconhecido como tal por aquilo que muitos designam, em privado, por populaça


Num texto sobre Marcelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República 2.0, poderia começar por falar de um político “lelé da cuca”, como no passado ele próprio chegou a referir-se, forjando uma gralha, a Francisco Pinto Balsemão, proprietário do “Expresso”, jornal onde o próprio Marcelo então escrevia. 

Poderia igualmente referir-me ao “chófer de táxi” (nas ruas de Lisboa) e ao “nadador-salvador” (no rio Tejo), duas das roupagens de que ele se serviu para tentar convencer o povo da capital a votar nele para presidente da câmara municipal (tendo sido derrotado sem apelo nem agravo por Jorge Sampaio). 

Foi, todavia, a desempenhar o papel de comentador 2.0 de TV, durante mais de década e meia, que ele conseguiu, finalmente, conquistar verdadeira influência política, depois de passar ingloriamente por uma “vichyssoise” inexistente, para ludibriar Paulo Portas, pela presidência do PPD/PSD e pela aposta numa “nova AD”, em que terá sido ludibriado por Paulo Portas, o que o levou a demitir-se da chefia do partido. 

É óbvio que foi a exercer semanalmente e durante tanto tempo a função de comentador 2.0 de TV – numa autêntica campanha eleitoral e de autopromoção política que nenhum outro candidato a PR alguma vez teve após o 25 de Abril – que Marcelo Rebelo de Sousa logrou tornar-se, sem grande esforço, inquilino 2.0 do Palácio de Belém, sucedendo no cargo ao seu companheiro de partido Aníbal Cavaco Silva 0.0, de má memória.

Marcelo tem-se mostrado – o que para mim não é novidade – um hábil intérprete da retórica populista 2.0, do discurso demagógico 2.0 característico da idade democrática e da era das massas, numa sociedade de comunicação dominada pela televisão. Com a TV, a demagogia inaugurou um novo regime que podemos caracterizar como neopopulista, essencialmente regido pelas estratégias de construção da imagem, como salienta Pierre-André Taguieff no seu livro “L’Illusion Populiste, de l’archaïque au médiatique”. Através do apelo ao povo, instrumento essencial do método populista, o demagogo moderno põe em prática diversos processos de manipulação das massas, transformando o populismo num clientelismo carismático que actua no tempo imediato e cujo propósito fundamental é o de fazer sonhar ou, mais exactamente, o de iludir a populaça. E é precisamente esse “imediatismo” que obriga Marcelo a não dar tréguas ao seu cirandar, para poder manter o mais tempo possível a clientela angariada pelo seu carisma 2.0.

Demagogo, telegénico e grande comediante da era da videopolítica – para usar uma expressão de Giovanni Sartori –, Marcelo corresponde, ainda que em modo menor (2.0), ao tipo de líder populista que tanto pode ser o homem de negócios, empresário ou gestor de sucesso (por exemplo, Ross Perot nos EUA ou Silvio Berlusconi em Itália) que permitem que o povo faça identificações imaginárias muito fortes; como pode ser o famoso jornalista, comentador e agitador político cuja influência e palavra fácil induzem o povo a convencer-se de que a verdade é só uma, é só dele, e só ele tem legitimidade para a interpretar (o exemplo mais extremo e mais terrível terá sido o de Carlos Lacerda, no Brasil, que terá levado Getúlio Vargas ao suicídio em agosto de 1954).

O demagogo telepopulista é, de certo modo, uma nova representação histórica do salvador da pátria, reconhecido como tal por aquilo que muitos designam, em privado, por populaça. O telepopulismo é um populismo adaptado às exigências da mediatização televisiva. No telepopulismo, o apelo ao povo colhe o essencial da sua eficácia simbólica nos recursos próprios do espaço mediático e na competência telegénica dos líderes políticos. O telepopulista recorre a uma estratégia de sedução e subversão cuja mensagem central é fazer-se eco de um desejo larvar de ruptura com o sistema político em vigor, com o establishment, com as elites políticas estabelecidas, com o jogo clássico dos partidos. O processo de globalização comunicacional tem sido, aliás, um factor de aceleração da passagem da democracia de partidos de massas para uma democracia de opinião, ou melhor, de opiniões instantâneas, sem espaço nem tempo para o debate e a reflexão. E assim se foi instalando uma democracia virtual, caracterizada pela substituição do espaço público por um espaço publicitário indefinidamente alargado. 

Marcelo Rebelo de Sousa pratica tudo isto em modo menor (2.0), como eu já disse, sobretudo preocupado em manter um poder que lhe permite dar largas ao seu óbvio narcisismo, exercendo poderes limitados que não lhe impõem a elaboração de um programa político estruturado e detalhado. E ainda bem que assim é, porque deste modo 2.0 não estaremos sujeitos às reminiscências de um passado salazarento e caetanista, revestido de uma fatiota democrática serôdia, tingida por um neofundamentalismo católico e beato 2.0. É que, parafraseando Eça de Queiroz, sob o manto diáfano das fantasias de Marcelo Rebelo de Sousa 2.0, a nudez forte da verdade seria tão incómoda para ele como para nós…

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Marcelo 2.0 e o clientelismo carismático


O demagogo telepopulista é, de certo modo, uma nova representação histórica do salvador da pátria, reconhecido como tal por aquilo que muitos designam, em privado, por populaça


Num texto sobre Marcelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República 2.0, poderia começar por falar de um político “lelé da cuca”, como no passado ele próprio chegou a referir-se, forjando uma gralha, a Francisco Pinto Balsemão, proprietário do “Expresso”, jornal onde o próprio Marcelo então escrevia. 

Poderia igualmente referir-me ao “chófer de táxi” (nas ruas de Lisboa) e ao “nadador-salvador” (no rio Tejo), duas das roupagens de que ele se serviu para tentar convencer o povo da capital a votar nele para presidente da câmara municipal (tendo sido derrotado sem apelo nem agravo por Jorge Sampaio). 

Foi, todavia, a desempenhar o papel de comentador 2.0 de TV, durante mais de década e meia, que ele conseguiu, finalmente, conquistar verdadeira influência política, depois de passar ingloriamente por uma “vichyssoise” inexistente, para ludibriar Paulo Portas, pela presidência do PPD/PSD e pela aposta numa “nova AD”, em que terá sido ludibriado por Paulo Portas, o que o levou a demitir-se da chefia do partido. 

É óbvio que foi a exercer semanalmente e durante tanto tempo a função de comentador 2.0 de TV – numa autêntica campanha eleitoral e de autopromoção política que nenhum outro candidato a PR alguma vez teve após o 25 de Abril – que Marcelo Rebelo de Sousa logrou tornar-se, sem grande esforço, inquilino 2.0 do Palácio de Belém, sucedendo no cargo ao seu companheiro de partido Aníbal Cavaco Silva 0.0, de má memória.

Marcelo tem-se mostrado – o que para mim não é novidade – um hábil intérprete da retórica populista 2.0, do discurso demagógico 2.0 característico da idade democrática e da era das massas, numa sociedade de comunicação dominada pela televisão. Com a TV, a demagogia inaugurou um novo regime que podemos caracterizar como neopopulista, essencialmente regido pelas estratégias de construção da imagem, como salienta Pierre-André Taguieff no seu livro “L’Illusion Populiste, de l’archaïque au médiatique”. Através do apelo ao povo, instrumento essencial do método populista, o demagogo moderno põe em prática diversos processos de manipulação das massas, transformando o populismo num clientelismo carismático que actua no tempo imediato e cujo propósito fundamental é o de fazer sonhar ou, mais exactamente, o de iludir a populaça. E é precisamente esse “imediatismo” que obriga Marcelo a não dar tréguas ao seu cirandar, para poder manter o mais tempo possível a clientela angariada pelo seu carisma 2.0.

Demagogo, telegénico e grande comediante da era da videopolítica – para usar uma expressão de Giovanni Sartori –, Marcelo corresponde, ainda que em modo menor (2.0), ao tipo de líder populista que tanto pode ser o homem de negócios, empresário ou gestor de sucesso (por exemplo, Ross Perot nos EUA ou Silvio Berlusconi em Itália) que permitem que o povo faça identificações imaginárias muito fortes; como pode ser o famoso jornalista, comentador e agitador político cuja influência e palavra fácil induzem o povo a convencer-se de que a verdade é só uma, é só dele, e só ele tem legitimidade para a interpretar (o exemplo mais extremo e mais terrível terá sido o de Carlos Lacerda, no Brasil, que terá levado Getúlio Vargas ao suicídio em agosto de 1954).

O demagogo telepopulista é, de certo modo, uma nova representação histórica do salvador da pátria, reconhecido como tal por aquilo que muitos designam, em privado, por populaça. O telepopulismo é um populismo adaptado às exigências da mediatização televisiva. No telepopulismo, o apelo ao povo colhe o essencial da sua eficácia simbólica nos recursos próprios do espaço mediático e na competência telegénica dos líderes políticos. O telepopulista recorre a uma estratégia de sedução e subversão cuja mensagem central é fazer-se eco de um desejo larvar de ruptura com o sistema político em vigor, com o establishment, com as elites políticas estabelecidas, com o jogo clássico dos partidos. O processo de globalização comunicacional tem sido, aliás, um factor de aceleração da passagem da democracia de partidos de massas para uma democracia de opinião, ou melhor, de opiniões instantâneas, sem espaço nem tempo para o debate e a reflexão. E assim se foi instalando uma democracia virtual, caracterizada pela substituição do espaço público por um espaço publicitário indefinidamente alargado. 

Marcelo Rebelo de Sousa pratica tudo isto em modo menor (2.0), como eu já disse, sobretudo preocupado em manter um poder que lhe permite dar largas ao seu óbvio narcisismo, exercendo poderes limitados que não lhe impõem a elaboração de um programa político estruturado e detalhado. E ainda bem que assim é, porque deste modo 2.0 não estaremos sujeitos às reminiscências de um passado salazarento e caetanista, revestido de uma fatiota democrática serôdia, tingida por um neofundamentalismo católico e beato 2.0. É que, parafraseando Eça de Queiroz, sob o manto diáfano das fantasias de Marcelo Rebelo de Sousa 2.0, a nudez forte da verdade seria tão incómoda para ele como para nós…

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990