Estes jornais não são para velhos


Assustados pelas mudanças tecnológicas, jornais e jornalistas andam há mais de 20 anos a tentar descobrir formas de justificar a sua existência no papel, enquanto alienam os seus mais fiéis leitores


Quem há muitos anos trabalha em redações de jornais já ouviu vezes sem conta esse mantra instalado desde os anos 1990 de que se tem de escrever pouco porque as pessoas não leem. As pessoas seriam os leitores, o que, logo à partida, parece um contrassenso, porque se o leitor não lê como se lhe pode chamar leitor? Mas deixemos essa contradição inicial nos termos para nos centrarmos no essencial, e o essencial é a função dos jornais e a sua capacidade de servir ou não a sociedade.

Não se põe em causa que o mundo mudou de forma tão veloz nas últimas décadas que retirar conclusões definitivas sobre a utilidade de jornais, jornalistas e a informação em geral neste tempo de aceleração e multiplicidade de fontes é o mesmo que um filósofo dar por encerrada a busca de respostas para o sentido da vida.

Agora, esse pânico instalado pelo advento da internet, por uma geração digital que deixou de ter relação próxima com o papel, por uma indústria de informação pouco ecológica pelas árvores que tem de matar para servir informação ao seu leitor, esse pânico, dizia, transformou-se rapidamente em debandada. E nessa debandada, nessa busca ansiosa para se reposicionarem para o futuro, os jornais e revistas foram desleixando o presente, acelerando os sinais de que se tratavam de um meio do séc. xx no séc. xxi e perdendo o norte e o seu lugar.

É preciso reconhecer que num país que nunca primou pelo nível de leitura (lembro-me algures nos anos 1990 de que tínhamos 60 leitores por cada mil habitantes, figurávamos atrás da Albânia ainda “enverhoxhalizada” e a galáxias de distância da Finlândia, onde os 400 leitores por mil serviam de farol inalcançável), querer à força arranjar novos leitores para o papel no princípio do seu declínio poderia levantar dúvidas em muitas cabeças, mas não na de grande parte de administradores e chefias da imprensa em Portugal.

Os jornais mudaram graficamente, introduziram muitos espaços brancos nas suas páginas (para aliviar o olhar do leitor com zonas neutras), aumentaram o entrelinhado, cresceram o corpo da letra, alteraram o formato, tudo em prol de um leitor novo que, mesmo não gostando de ler e com tanta coisa que a internet lhe oferecia, para além da televisão, haveria de se iniciar na aventura do papel só porque sim.

Ao invés, os jornais foram perdendo paulatinamente espaço arduamente conquistado, as vendas diminuíram. Os anunciantes fugiram para as televisões, o preço da publicidade baixou para níveis da uva- -mijona, foi-se pisando (e pisa-se) muitas vezes o risco na separação entre informação e negócio. Há 20 anos que, com a corda na garganta, os jornais vão-se enforcando devagarinho a cada dia que passa, sonhando sempre com esse leitor novo que salvará o papel da sua condenação.

À medida que o negócio dos jornais (que em momento algum da sua existência foi um maná de prosperidade) se ia transformando numa permanente enxaqueca, espezinhadas as margens pela míngua de anunciantes, iam-se reduzindo as páginas e enfraquecendo o conteúdo, tratadas as redações com a dieta das reestruturações que as foram deixando pele e osso. E a pele que ficou, sendo maioritariamente jovem e inexperiente – este é o tempo dos jovens, quase como se no tempo da informação acelerada não houvesse espaço para a memória –, pode ser explorada (em horas e salários) e mais facilmente manipulada (pela precariedade e falta de experiência).

Resultado: no pânico para se adaptarem aos tempos, os jornais terão acelerado a sua própria decadência. Quanto mais leitores perdiam, mais decisões tomavam sem conseguir estancar a perda de leitores.

Na ânsia de conseguir o novo, foram perdendo o velho. Desde pelo menos meados da década de 1990 que os jornais têm servido mal os seus leitores mais velhos, aqueles que têm com o papel relação de afeto. Que gostam de sentar-se no café pela manhã a ler as notícias do dia, que gostam de assinalar as matérias mais longas para as ler à noite ou no fim de semana – gente com poder de compra para atrair anunciantes, gente com experiência e saber para não se deixar iludir por espaços brancos e textos mal escritos.

Ainda há hoje leitores na casa dos 40 anos que mantêm relação próxima com o papel, gente com mais 30, 40 anos de vida útil para continuar a ler jornais e revistas. Para não falar das gerações agora com 50, 60, 70, 80 anos que não se reveem naquilo que se escreve porque não têm qualquer afinidade com a geração que os escreve.

Nestas décadas de busca intensa para descobrir um lugar para si na era digital, de se justificarem perante esse leitor novo, os jornais e revistam foram alienando aos poucos aqueles que sempre os tinham acompanhado, os leitores do papel, que também sofreram o impacto da internet no seu dia-a-dia e que se viram privados dos média em que confiavam para navegar num mundo de milhentas fontes de informação.

Se calhar valeria a pena arrepiar caminho e pensar que, se o papel não é o futuro, ainda não é o passado, e no meio do ruído talvez os jornais ainda sejam precisos para auxiliar na reflexão, sem tantos espaços em branco e com menos paternalismo para com quem lê. E, sobretudo, admitir que a culpa não é do leitor.

* Sem estar relacionada diretamente com o filme, esta reflexão partiu de “The Post”, de Steven Spielberg, e do papel da imprensa como garante da democracia.