A Ordem dos Médicos é favorável à prescrição de medicamentos à base de canábis para algumas doenças mas não concorda, nesta fase, com a prescrição de erva para fumar.
Um parecer solicitado nos últimos meses pelo bastonário Miguel Guimarães ao Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem dos Médicos foi homologado ontem e vai ao encontro das propostas de BE e PAN, hoje em votação no parlamento, de que a prescrição de canábis medicinal deve ser feita mediante uma receita especial, por exemplo como a que existe para os derivados de morfina. A visão dos médicos é porém mais reticente no que toca à forma de administração da canábis: enquanto ambos os partidos admitem a utilização da planta, substâncias e preparações de canábis, a Ordem entende que só existem evidências para o uso de medicamentos feitos com os extratos da planta, que permitam assim uma toma mais controlada. “Neste momento seria extraordinariamente precoce estar a avançar já para o fumo”, disse ao i o bastonário Miguel Guimarães, sublinhando que noutros países europeus a regulação tem incidido no uso de preparações à base de canábis, sendo que a grande maioria não é ainda comercializada em Portugal. De acordo com a base de dados do Infarmed, atualmente existe apenas um produto à base de canábis autorizado para comercialização no país, uma solução para pulverização bucal. Não tem comparticipação e surge com o preço de mercado de 498 euros, sendo que não está de momento à venda nas farmácias.
Miguel Guimarães justifica a posição com a evidência disponível até ao momento, defendendo que o fumo de canábis para fins terapêuticos deveria ser objeto de ensaios clínicos, admitindo porém que, em função do que vier a ser aprovado no parlamento, a Ordem poderá pronunciar-se de uma forma mais aprofundada. “A Ordem dará a sua opinião sobre essa matéria mas neste momento o parecer é favorável ao uso de medicamentos”, diz.
Só para algumas doenças O parecer da Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem dos Médicos, a que o i teve acesso, resultou de uma revisão da literatura científica e de informação pública sobre ensaios clínicos registados no site da Agência Europeia do Medicamento (European Medicines Agency, EMA) e Clinicaltrials.gov.
Os responsáveis dividem as diferentes patologias para as quais existem estudos em três categorias de validação das vantagens clínicas. No grupo de situações para as quais consideram que existe forte evidência da eficácia da utilização de canábis surgem a dor crónica em adultos, incluindo a dor neuropática, o uso no alivio de enjoo, náuseas e vómitos associados a tratamento oncológico, a redução da espasticidade causada pela esclerose múltipla e o controlo da ansiedade. Há, depois, evidência moderada para fundamentar o uso de canabinoides na melhoria do sono em pessoas com apneia obstrutiva do sono, fibromialgia, anorexia por cancro, stress pós-traumático e no tratamento do glioma (um tipo de tumor cerebral).
É por fim apresentado um grupo de condições para os quais os peritos consideram que não existe ainda evidência que permita afirmar a eficácia da canábis e dos seus componentes, nomeadamente no tratamento de outros cancros que não o glioma, nos sintomas de síndrome de intestino irritável, epilepsia, espasticidade por lesão medular, esclerose lateral amiotrófica, doença de Huntington, glaucoma, doença de Parkinson ou esquizofrenia.
Miguel Guimarães sublinha que o parecer só é favorável à prescrição de medicamentos à base de canábis em condições com um nível de evidência moderado a forte, o que exclui algumas condições elencadas no projetos de lei que hoje são apreciados em plenário. É o caso da epilepsia ou Parkinson, situações para as quais o Bloco, no preâmbulo da sua proposta de lei, entende haver evidência clínica.
O parecer do Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem assinala que “nenhum país europeu atualmente autoriza a canábis fumada para fins médicos” e consideram que a despenalização do cultivo para autoconsumo, como propõem BE e PAN, pode merecer a reflexão da sociedade, mas pedem precauções. “As eventuais alterações legais que possam facilitar o uso direto de canábis para fins medicinais não devem negligenciar os potenciais riscos de saúde pública, incluindo o abuso na sua utilização como droga recreativa”. Os peritos falam de desafios particulares tanto no uso direto da planta como dos seus derivados. “A sua eventual permissão deve ser alvo de reflexão ponderada e multidisciplinar, integrando as questões legais da sua produção, comercialização, controlo de qualidade de fitoterapêuticos, do benefício/risco terapêutico em cada condição clínica, e porventura a própria vontade da sociedade devidamente esclarecida.”