Os não europeus não pensam?


Este é o título provocatório de um livro do pensador de origem iraniana Hamid Dabashi, mas podia ser a expressão da política de Estado que permite massacrar impunemente pessoas neste mundo sem que se multiplique nenhum “Je Suis” bem-intencionado


Vamos relatar isto com um ambiente feliz, misturado com torradas, de uma família dos EUA, como naqueles filmes com uma estética de anos 50, em que o marido está impecavelmente vestido e às crianças é servida, pela solícita e loura mulher da família, a mais importante refeição do dia. Vamos esclarecer um pequeno ponto prévio: aqui, quando falamos em europeus, não incluímos as pessoas de várias cores que vivem do Atlântico aos Urais, mas, regra geral, falamos dos brancos, vivam na Áustria ou na Austrália, nos EUA ou até em Israel, porque, aqui, europeus são os descendentes da cultura e dos povos que habitaram o Velho Continente desde meados da Idade Média, excluindo os árabes que andaram pela península Ibérica.

Mas voltemos ao pequeno-almoço: ovos, café, sumo de laranja. Finda a feliz refeição no lar, seguem-se as despedidas consagradas pelo sagrado matrimónio e pela paternidade; a esposa vai levar de carro as crianças à escola; e o marido segue responsavelmente, de carro, para o trabalho.

Passa um posto de controlo, entra num edifício em que se identifica com um cartão e uma espécie de relógio de ponto com impressões digitais. Muda de vestimenta no vestiário das instalações, guarda o fato e a gravata no respetivo cacifo. Dirige-se em farda militar para o seu turno de trabalho, numa espécie de contentor junto ao edifício principal. É um orgulhoso membro da força aérea dos EUA, um piloto com centenas de missões, feitas em turnos de meia dúzia de horas, e milhares de “inimigos” dos EUA abatidos. Nunca voou, ele próprio, para fora do seu país, mas as suas missões executam-se em todo o globo terrestre. A conversa que se segue é oficial, está gravada e registada pelos próprios militares para uma avaliação contínua da sua performance. O conteúdo faz parte da introdução do livro “Theorie du drone”, do filósofo francês Grégoire Chamayou. É uma descrição de vários operadores de um desses aparelhos. Por uma questão de economia de texto – dura um capítulo inteiro –, vou resumir o que é dito, mas não alterando um substantivo ao seu conteúdo.

Era de noite no Afeganistão e, antes que o sol se levantasse para o dia começar, os drones tinham observado um comportamento “anormal” no terreno. A noite acabava e um grupo de pessoas preparava-se para viajar num conjunto de veículos. “Podes fazer um zoom para se ver melhor?”, pedia o oficial. “São pelo menos quatro que estão a entrar para a pick-up”, diz um deles, “repara que um deles, que está mais a norte, parece pressionar alguma coisa contra o peito”, acrescenta outro. “É o que ultimamente eles andam a fazer: metem a merda das armas dentro da roupa, para que não possamos fazer uma identificação positiva.” O piloto e o operador vigiam a cena num monitor, estão vestidos com uma farda de caqui militar, têm sobre os ombros o símbolo da sua unidade, têm auscultadores colocados, estão sentados lado a lado num sítio onde se observam várias luzes de aparelhos eletrónicos, mas não estão exatamente no cockpit de um avião. As imagens captadas no Afeganistão pelo drone armado (um aparelho voador não tripulado) são enviadas via satélite para a base de Creech, não muito distante de Indian Springs, no estado norte-americano do Nevada. Esta base é descrita, com orgulho, pelos próprios como “a casa dos caçadores”. O trabalho é normalmente entediante, noites inteiras de vigilância para alguns momentos de ação, normalmente substituídos por comer uma barra de chocolate; até que serão rendidos na manhã seguinte por um outro turno de homens. Nessa altura, o piloto e o operador voltarão de carro para as suas famílias e casas nos arredores de Las Vegas, depois de uma viagem de 45 minutos de carro. Neste dia e neste momento, têm de tomar uma decisão. Os passageiros dos três veículos, que partiram há poucos minutos da pequena aldeia da província afegã de Daikundi, não sabem que estão sob observação aérea. Para a decisão da sua eliminação vão estar presentes, não só o piloto e o operador, mas um coordenador de missão, um “observador de segurança”, uma equipa de analistas de vídeo e “um comandante das forças terrestres”, que acabará por dar luz verde ao morticínio. Pelo caminho vão comentando: “Não consigo identificar armas, mas devem estar escondidas.” “O camião vai dar um excelente alvo, é um Chevy Suburban”, diz descontraidamente o observador, com o assentimento do piloto. O coordenador da operação repara que pode haver “pelo menos uma criança, perto da viatura”. “Merda”, exclama o operador, “não me pareceu ver alguma coisa assim tão pequena, não será um adolescente?” “Temos de verificar”, nota com enfado o coordenador. “Estão a rezar. Parecem adolescentes”, nota um. “Adolescentes? Isso já se pode eliminar.” Passadas umas dezenas de minutos, monitorizados e alimentados por dados do drone, tratados por um algoritmo que permite calcular percentagens de cenários, baseadas num conjunto de estereótipos que aponta decisões, é dada, depois da oração das vítimas, ordem de ataque. Nesta operação, porque está presente um único drone, este vai ser auxiliado por dois helicópteros de ataque. Quatro horas depois do início da observação e minutos depois da destruição dos três veículos, faz-se o balanço. Operador: “Quem são estes? Eles estavam no veículo do meio”. O coordenador: “São mulheres e crianças”. O observador: “Parece uma criança, aquele que agita uma bandeira”. O operador: “Neste momento não me sinto à vontade para disparar sobre ele.” “Não”, concorda o coordenador.

Para minorar estes pequenos enganos, as estatísticas militares dos EUA passaram a considerar combatentes de guerra toda a pessoa do sexo masculino, esteja ou não armada, “reduzindo” assim em muito as baixas colaterais.

No entanto, de acordo com o site The Intercept, as estimativas oficiais em 2017 apontam para cerca de 3 mil mortes através de ataques conduzidos por aviões não tripulados (drones) em quatro países (Afeganistão, Iémen, Paquistão e Somália). A Clínica de Direitos Humanos da Columbia Law School (EUA) e o Centro de Estudos Estratégicos de Saná (Iémen) apontam para a falta de transparência que envolve a divulgação do número de vítimas. As estimativas oficiais reconhecem apenas 2935 vítimas mortais, enquanto The Bureau of Investigative Journalism (TBIJ), uma organização de jornalistas de investigação sem fins lucrativos, aponta para entre 6382 e 9240 mortos por ataques com drones desde 2004.

O número de civis assassinados é estimado pelo TBIJ entre 739 e 1407, a que se somam entre 240 e 308 crianças. De acordo com o The Intercept, os dados podem esconder um número ainda superior de vítimas civis, já que os EUA têm conduzido ataques com drones sobre “homens em idade militar” nas zonas onde operam – inclusivamente durante “casamentos, funerais e outras ocasiões comunitárias”.

O mais interessante é que, embora haja organismos que aprovam e se responsabilizam por estas operações, muitas delas em países com que os EUA não estão oficialmente em guerra, nem os deputados norte-americanos foram chamados a pronunciar-se sobre estas agressões. Grande parte das decisões são tomadas não só por dados recolhidos pelos próprios drones como até sopesadas por conclusões que os computadores dessas máquinas voadoras considerem “padrões mais prováveis”. Há gente assassinada devido ao “pensamento” e conclusões dos computadores de drones, que assassinam pessoas que, pelos vistos, os europeus e os seus descendentes julgam não ser gente que pense o suficiente para merecer viver. Aliás, tecnicamente, já é possível programar essas máquinas para executarem diretamente pessoas, sem intervenção e decisão humana, apenas por uma tomada de decisão baseada na existência de determinados padrões que configurem a existência de uma “atividade terrorista”.

Do ponto de vista de escala de valores, teríamos em primeiro lugar os “europeus” capazes de pensar; em segundo lugar, as máquinas, criadas por eles, capazes de assumir a liquidação de “sub-humanos”; e, em terceiro lugar, todos os bípedes não brancos e não pertencentes às monarquias do Golfo que andam pelas terras pobres. Nas cidades da Europa e dos EUA, a lógica repete-se: ser cidadão depende muito da cor da pele e do bairro onde se habita.

Para isto acontecer com os drones, e como acontece no dia-a-dia em países como Israel, é preciso uma filosofia sobre o outro que o torne desumano. Só isso pode justificar que sejam presos menores e condenados a penas de dezenas de anos de cadeia. Isto só é possível porque há uma ideologia, não publicamente assumida, de que há humanos e que há outros bípedes que podem ser agredidos, detidos, torturados e mortos.

O caso da prisão da adolescente palestiniana Ahed Tamimi é um símbolo dessa ideia de uma raça superior que tem o direito de matar tudo o resto. A jovem de 16 anos tentou a agredir soldados israelitas minutos depois de o seu primo de 15 anos ter recebido na cara um tiro, à queima-roupa, de uma bala de borracha, ficando às portas da morte. Foi detida juntamente com os seus familiares e arrisca, segundo a imprensa local, uma pena de prisão que ultrapassa os dez anos. Não consta que o militar israelita que disparou contra o primo tenha qualquer problema em continuar a fazê-lo. A legislação israelita prevê a prisão de crianças a partir dos 12 anos. O caso que acontece todos os dias na Palestina ocupada só teve um maior destaque porque as redes sociais viralizaram o sucedido e a jovem, que já se tinha oposto, com 12 anos, ao derrube da sua casa, é loura e tem os olhos azuis, como uma europeia.

A pergunta retirada de Hamid Dabashi “Os Não Europeus Pensam?” serve para nos esclarecer duas coisas: a base do massacre dos pobres e dos povos explorados deste mundo começa numa operação ideológica em que lhes é retirada a sua humanidade. E, bem vistas as coisas, é mais provável que os carrascos ditos europeus não pensem do que as suas vítimas não sejam humanas. O sofrimento é humano, a violência dos carrascos é inumana.