Os figurantes


O episódio dos figurantes de Aveiro, pouco relevante como encenação com figurantes dotados de falas, é bem a prova deste tempo novo, menos tolerante, mais exigente e mais transparente


Figurante – Pessoa que, em cinema, televisão ou teatro, participa com papel decorativo ou pouco importante, geralmente sem falas. Em sentido figurado, pessoa cujo papel é insignificante ou meramente decorativo

 

A vida é feita de figurações transitórias, embora alguns persistam em querer ser figurantes toda a vida, mais ou menos envoltos em papéis decorativos, sem relevância e sem verbalizações. O que em monarquia, com súbditos, poderia ser normal, numa república democrática é contrário à essência da cidadania e do exercício da liberdade de expressão.

Engalanados com o rótulo de “país de bons costumes”, amiúde resignamo- -nos ao papel de figurantes perante toda uma realidade a correr à nossa frente, sem que exercitemos o pensamento com maior exigência, verbalizemos o que nos vai na alma ou impulsionemos a ação. Qualquer uma das três expressões de cidadania é legítima e desejável. Mas não. Quantas vezes a solução, na zona de conforto, é a da resignante figuração de aceitar tudo o que nos é dito ou feito?

É do domínio da figuração quando se permite, sem clamor cívico individual e comunitário, o somar de situações e de opções políticas que conduzem a uma intervenção musculada da troika, impondo um quadro político de austeridade cega, combinado com uma deriva neoliberal, em que nem o mínimo da dignidade humana é respeitado. Em décadas de vida e de participação na vida pública, também já tive a minha dose de figuração cívica e política, mas há sempre um tempo para dizermos basta.

É da órbita da figuração coletiva um país que não ataca como devia a pobreza infantil, a exclusão social, o problema demográfico, o envelhecimento da população, a solidão, a desertificação, o mau funcionamento da justiça ou as promiscuidades e bloqueios no funcionamento da economia, despertando apenas para os problemas quando se convertem em catástrofes ou quando são mediatizados com imagens.

É querer transformar os cidadãos em figurantes, persistir no erro de construir narrativas políticas barricadas nas trincheiras partidárias, com pouco ou nenhum nexo com a realidade; insistir em não explicar as opções políticas, sobretudo quando resultam do incumprimento da palavra dada, como aconteceu com as rendas das renováveis da EDP; alimentar polémicas estéreis nas redes sociais para distrair atenções ou tolerar os índices de alheamento cívico da participação nos atos eleitorais e nos esboços de democracia participativa.

Com maiores ou menores encenações, o Orçamento do Estado para 2018 foi aprovado pelo PS, BE, PCP, PEV e PAN. É o Orçamento deste acervo governativo porque todos foram muito mais que figurantes. Foram protagonistas centrais das opções e das omissões políticas materializadas. Um instrumento orçamental que vergasta parte dos trabalhadores prestadores de serviços a recibo verde nunca pode ser um “Orçamento para todos”. Com uma direita em pós-governatório – no caso do PSD, sem liderança – e uma esquerda cada vez mais exaltada com as circunstâncias e as responsabilidades políticas que gerou, a dúvida está em saber-se se ainda estamos na fase de “os cães ladram e a caravana passa”, se passámos para o patamar do “cão que ladra não morde” ou se já subimos para o estádio do “cão bom nunca ladra em falso”.

Matilhas à parte, este é um Orçamento que prossegue a reposição de rendimentos, enuncia mais investimento público, antes das cativações, e mantém os compromissos internacionais com o Tratado Orçamental, com a União Europeia e com os credores, na expetativa de que o turismo, a aplicação dos fundos comunitários e o Banco Central Europeu continuem a dar os seus contributos para as margens de ação governativa.

Para além da manutenção da trajetória, da sua sustentabilidade futura, um dos grandes desafios é saber se o governo vai aproveitar o tempo que resta até à recomposição das oposições para acertar a ação e a comunicação, que têm sido desastrosas. É que boa parte dos problemas surgem por responsabilidade própria, por agitação dos partidos que sustentam a solução governativa ou por inação ou ausência de vontade política.

Dois anos depois, com alguns resultados, não é tempo de reincidir nos tiques nervosos, numa certa arrogância da ação ou na presunção de que a sorte brilhará para todo o sempre. Os sinais de mudança do ambiente político e social são visíveis e não devem ser negligenciados.

O episódio dos figurantes de Aveiro. pouco relevante como encenação com figurantes dotados de falas, é bem a prova deste tempo novo, menos tolerante, mais exigente e mais transparente. Se somarmos a agitação que grassa nos partidos que sustentam a solução governativa, é preciso muitas ganas para prosseguir. É dar corda aos sapatos.

 

Notas Finais

Comédia. Os desenvolvimentos da novela do súbito anúncio da transferência da sede do Infarmed de Lisboa para o Porto não param de nos surpreender. Ainda bem que o ridículo e o populismo não precisam de prescrição médica.

Tragédia. Até pode parecer um desperdício de capital político que António Costa tenha imposto a mudança de posição do PS na taxação dos produtores de energias renováveis, colocando-se na mira do BE com epítetos de “deslealdade” e “quebra da palavra”, mas, do mal o menos, ficaram salvaguardadas as palavras dos secretários de Estado, que têm de se relacionar diariamente com o partido apoiante do governo.

Tragicomédia. O Porto e Portugal perderam para Amesterdão a sede da Agência Europeia do Medicamento, mas Lisboa ganhou a Haia a condição de Capital Europeia do Desporto. Espera-se que não haja nenhuma alma a impor que a designação passe a ser Capital Europeia do DisPorto.

 

Militante do Partido Socialista, Escreve à quinta-feira