A magna destruição da ERC


Em 2016, a ERC abriu 21 processos contraordenacionais, seis no universo televisivo, dois no setor da rádio e dez na imprensa. Trata-se de um dos piores reguladores na função de verificação de conformidade e de correção


A menorização institucional que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social tem constatado nos últimos anos tem como primeiros responsáveis os principais partidos políticos portugueses. Digo isto desta forma tão clara e sem ardis porque estamos num ponto em que quase tudo carece de reconstrução, começando, desde logo, pela reposição do prestígio de uma entidade pública essencial à nossa democracia.

Mas há um responsável direto e diário pelo estado a que chegámos e esse é o ainda presidente da ERC. A escolha que o parlamento concretizou há cinco anos antecipava todos os perigos. Porque a personalidade era desconhecedora da boa gestão de recursos, porque o ente era promissor na desagregação das equipas, porque o ser era confrangedoramente ávido de protagonismo, uma quase doença infantil que o universo portuense da política há muito identificava.

A ERC vive, por estes dias, outro dos tempos de infortúnio. O parlamento não consegue entender-se sobre a construção de um conselho regulador e os deputados não se sentiram vinculados ao débil acordo conseguido. Se olharmos para as personalidades que nos foram dadas a conhecer, mesmo que distintas pessoalmente, elas não nos dão créditos para a conformação de uma autoridade administrativa independente de novo escopo e de posterior leitura dos seus poderes.

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social é uma entidade com uma dimensão constitucional que vai ao núcleo central dos direitos. O exercício da liberdade de imprensa e do direito à informação, a livre expressão das diversas correntes de opinião e a garantia do pluralismo são, obrigatoriamente, o seu esteio primordial. A ERC não os reivindica a cada passo porque eles se vão integrando numa espécie de autorregulação que tem mostrado ser minimamente végeta.

Não se conhece articulação sustentada e válida entre a ERC e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, ou relações parceiras com o Sindicato dos Jornalistas e as associações empresariais de imprensa. Vive, por estes tempos, num mundo próprio, distante de tudo e de todos, como fossem Feiticeiros de Oz.

Mas a ERC tem outros universos de preocupações que não tem cumprido, que até tem negado. O princípio da não concentração da titularidade das entidades detentoras de direitos, o princípio da independência das entidades que prosseguem atividades de comunicação social perante os poderes político e económico, a transparência dos mercados de imprensa e audiovisual, até o acompanhamento dos princípios de neutralidade das administrações públicas no que se refere à publicidade não comportaram qualquer iniciativa pertinente do regulador.

A ERC dispõe de um conjunto de obrigações que são relevantíssimas. Uma delas é a verificação, que não se entende limitada a estudos internos, do cumprimento das licenças e concessões relativas à atividade de rádio ou televisão. O conhecimento incorporado, no âmbito técnico da ERC, tem equiparação ao melhor que se verifica em qualquer país europeu. Porém, não é de molde a ter consequências conhecidas, a ter implicações futuras, a observar correções de percurso.

Um dos casos mais relevantes da visão burocrática da ERC é a concretização das recomendações dos auditores externos na verificação do contrato de serviço público da RTP. Há aqui, desde logo, um problema de dependência. A competência de fiscalizar deveria levar a que fosse o regulador a promover a contratação do auditor por conta do concessionário, assegurando-se um regime claro de penalidades perante a inadequada promoção da verificação de conformidade só conhecida em tempo posterior. Mas o que de mais relevante se inquire é a carência de enunciação de medidas para o futuro, uma replicação das mesmas áreas de análise, uma total impossibilidade de verificação de comportamentos semelhantes através de observação comparativa com outros operadores públicos europeus.

Um outro universo a carecer de permanente atenção é o da verificação da titularidade dos meios. O último estudo conhecido, datado de 2015 e que reporta a um período anterior a 2013, não nos diz da realidade. A ERC desconhece a obrigação de garantir matriz de análise anual, com base em contas e relatórios publicados e com obrigações que resultam do total conhecimento do universo proprietário. Acresce ainda a falta de imaginação (ou vontade!) na criação de instrumentos de verificação e em colaboração com outras entidades da administração pública, para obter informação que estruture uma análise do seu mercado (cujo universo é pequeno, comparado com outros setores) e dos operadores regulados.

A obrigação do conhecimento da comunicação social regional e local, nas suas muitas realidades e diversidades, foi motivo de exame em 2012 e 2013. O relatório do ano seguinte diz-nos muito do processo de degradação da estrutura e da tipologia dos agentes no terreno, a sua regressão em ouvintes e leitores, a sua aproximação de um ponto sem retorno. Ora, não resulta do regulador qualquer iniciativa que leve à ponderação dos decisores perante esta decrepitude anunciada.

A visão sobre os novos média, que já mereceu uma atenção dos técnicos da ERC, aparece-nos medrosa e sem linhas claras para a ação. Talvez tenhamos a síndrome do seguidor, uma leitura liliputiana em que basta seguir pelo carreiro.

Na camada populacional mais habilitada e digital, a informação com base nas redes sociais é um dos temas-chave nos dias de hoje. Quando se aposta nesta ferramenta em campanhas eleitorais, quando se fala em algoritmos desenvolvidos por multinacionais para filtrar a disseminação de fake news, apesar de a ERC ter todas as condições e recursos para o efeito, nada discutiu de decisivo e público, nada avançou, nada propôs. Elaboram como fossem contemporâneos de Gutenberg.

Olhando para este património relevante de inação, importa confrontar o regulador livre da comunicação com os princípios da transparência. A ERC, em iniciativa que nos impeliu a uma concordância militante, criou um portal de transparência sobre os média (transparencia.erc.pt). Porém, de imediato se colocam as trancas na porta: para aceder, qualquer cidadão terá de se registar e solicitar uma chave de acesso. Uma bela transparência esta em que o objetivo é saber quem acede, um Big Brother orwelliano puro. Seria relevante o parlamento inquirir a ERC sobre o tratamento que faz destes dados. É que a 25 de maio de 2018 entra em vigor a componente funcional e sancionatória do Regulamento Geral de Proteção de Dados.

Nestas páginas negras de relatos sobre o tempo fúnebre da ERC fica ainda a leitura quanto ao poder de fogo do regulador. Este revela-se através das normas, das diretrizes que aprova e faz cumprir. Também se revela na capacidade de verificar a sua cabal observação. Em 2016, a ERC abriu 21 processos contraordenacionais, seis no universo televisivo, dois no setor da rádio e dez na imprensa. Trata-se de um dos piores reguladores na função de verificação de conformidade e de correção. Mas o mais risível é o valor aprovado em coimas: 133 467 euros. Isto sim, é que são resultados! É um valor que nem potencia a dissuasão de uma rádio-pirata dos anos 80, quanto mais os grupos de média de hoje. Economicamente, é o resultado da “excelente” gestão – nem sequer pagou o valor dos subsídios de alimentação dos agentes que intervieram em processo.

Está de parabéns, senhora ERC. Conseguiu ser, nestes últimos tempos, a mais inútil das instituições vivas da regulação portuguesa. Salvam-se Arons de Carvalho e Rui Gomes pela paciência que inventaram para respeitarem os mandatos.

Deputado do PS