Sarjeta, poder e o Diabo


Como é costume, quem se lixa é o mexilhão, entalado entre o regabofe pornográfico do sensacionalismo, disfarçado de campeão da liberdade, e o respeitinho, o controlo e as meias- -verdades de órgãos oficiosos dos vários poderes, disfarçados de arautos do bom senso


Há dois dias, num colóquio sobre liberdades de expressão e de imprensa, um colega advogado que muito considero e estimo, a respeito do sensacionalismo, afirmou que este era criticável e pernicioso, mas que, entre um jornalismo de sarjeta e um jornalismo de poder (expressões dele), preferia aquele, em nome da liberdade e da transparência. Logo ali percebi bem, julgo, o que ele queria dizer, e a boa intenção com que o pensa e disse, mas também logo ali disse que prefiro não ter de escolher entre um jornalismo e outro, impondo-se denunciar e combater os dois. Escolher entre um e outro é como escolher entre ficar sem o olho esquerdo ou o direito, ou entre sofrer desta doença grave ou daquela, ou entre perder a coisa essencial A ou a B.

De facto, não se pode escolher, e verdadeiramente não é preciso escolher, porque essas duas formas de jornalismo não são a alternativa uma da outra, nem a cura uma da outra, nem o antídoto uma para a outra. Aliás, creio até que se alimentam mutuamente, e que o jornalismo de sarjeta, que também é um exercício de poder, não se pode justificar ou legitimar à luz de uma ideia de combate ao poder e aos seus mecanismos ínvios de controlo, incluindo através da comunicação social, porque contra aqueles mecanismos não vale tudo, e também porque quanto mais sarjeta, maior a tentação dos poderes para caminhos de contraponto. E, no meio disso, e como é costume, quem se lixa é o mexilhão, entalado entre o regabofe pornográfico do sensacionalismo, disfarçado de campeão da liberdade, e o respeitinho, o controlo e as meias-verdades de órgãos oficiosos dos vários poderes, disfarçados de arautos do bom senso.

Entre um e outro, realmente, venha o Diabo e escolha. Mas creio que não virá, porque em matéria de comunicação social há outros perigos e temas, bem mais sub-reptícios do que a sarjeta ou o poder, com os quais o Diabo andará entretido a tecer a sua paciente e eficiente teia. Por exemplo, com os tratos de polé a que o frenesim diário por notícias, escândalos e maravilhas submete a presunção de inocência. E também com a erosão do exercício do contraditório, tragado pela rapidez e pela sofreguidão das notícias em primeira mão, e confundido com um “comente lá nuns minutinhos”. Ou também com a frequente falta de condições materiais (dos órgãos e dos indivíduos) para exercer a função jornalística, ou para fazer jornalismo de investigação, ou para aprofundar e procurar para lá do óbvio e da espuma. A liberdade e a qualidade custam dinheiro, senhores. E aqui e ali entreter-se-á o Diabo com questões de capitalização, de governance, de freios e contrapesos, de regulação, e muitos outros etcéteras. Isto quando lhe sobra tempo do delicioso espetáculo que é assistir ao faz-de-conta protagonizado por fontes desinteressadas e jornalistas objetivos. Sentados lado a lado, o Diabo e Molière riem muitas vezes a bom rir. E quando a peça é sobre processos judiciais, junta-se-lhes Shakespeare e quase caem os queixos aos três perante tanta comédia dos enganos.

 

Escreve à sexta-feira