Floresta, política e mentiras

Floresta, política e mentiras


A atual Refoma Florestal padece de vários pecados mortais, um dos quais é a “sovietização” das políticas florestais em matéria de solo privado


As cabeças “bem pensantes” deste país alarmaram-se com a greve na Autoeuropa, mas não as ouvimos aquando da liquidação da Cimpor (a mais internacional das empresas portuguesas) ou da destruição de valor da PT (o seu CEO foi mesmo condecorado por um Presidente da República perito em matérias de economia…). Ou agora, aquando da verdadeira “sentença de morte” que a dita Reforma Florestal vem decretar à fileira árvore/ papel em Portugal…

Se a Autoeuropa é uma empresa que exporta cerca de dois mil milhões de euros/ano, que emprega directamente cerca de 3.300 trabalhadores e, indirectamente, provavelmente outros tantos, o conjunto das empresas fabricantes de pasta e papel a partir do eucalipto é, “apenas”, bastante mais do que isso.

Esse conjunto é o terceiro maior do ranking exportador (com um volume semelhante ao da Autoeuropa) mas, de longe, o primeiro exportador de valor acrescentado nacional, sustentando um cluster de mais de 60 mil pessoas: os trabalhadores diretos na indústria (mais de 3 mil), os que no interior do País trabalham na floresta (cerca de 10 mil) e os muitos milhares que nesse interior (vendas, motoristas, pequenas metalo-mecânicas, gasolineiras, etc.) fazem funcionar uma frota automóvel que, anualmente, percorre mais de 13 milhões de quilómetros, ou seja, o equivalente a 320 voltas à Terra, para não falar nos milhares de proprietários produtores florestais que valorizam muitos terrenos de outra forma incultos ou abandonados…

O setor silvo-industrial baseado no eucalipto mereceria, por isso, mais e melhor.

A Reforma Florestal anunciada e posta em discussão muito antes dos terríveis eventos deste Verão de 2017, e um aparente consenso informal sobre a necessidade de mudanças, pareciam prenunciar em finais de 2016 um futuro menos negro (literal e figuradamente) para os que vivem de e para a floresta.

Mas também nesta área se estão a passar os limites da decência. No meio do “ruído” mediático suscitado por recentes declarações do sr. ministro da Agricultura, deixo três exemplos sob a forma de três perguntas.

1. A nova legislação – que, na prática, vai proibir novas plantações de eucaliptos, resulta de um diploma aprovado pelo governo anterior?

Não. O sr. ministro da Agricultura nunca explicou as razões técnicas do diploma. Mas disse várias vezes que o novo Decreto resultava de uma legislação que já vinha do anterior Governo.

Acontece que não existe qualquer legislação do Governo anterior nesse sentido. Existe, sim, uma Resolução do Conselho de Ministros conhecida por “atualização” da Estratégia Nacional para as Florestas de Setembro de 2006, que se limitou a ser isso mesmo – uma atualização de uma Resolução do Conselho de Ministros aprovada (atenção!) pelo XVII Governo constitucional, de maioria do PS.

Em 2015 a Resolução (que não tem caráter de lei) recomendava que em 2030 não se excedessem os 812 mil hectares de eucalipto, na mesma lógica de médio/longo prazo com que Resolução anterior (do dito governo socialista) recomendara que em 2030 a espécie não excedesse os 600 mil hectares, quando então já existiam mais de 750 mil…

Argumentou o sr. ministro que, sendo a área actual de eucalipto já de 848 mil hectares (mais 4,4% que o “objectivo” da Estratégia), tornava-se “lógica e inevitável a interdição de novas áreas líquidas” de eucalipto. Acontece que nessa mesma página da atualização da Estratégia Nacional para as Florestas, figura como “objectivo” ter um máximo de 789 mil hectares de pinheiro bravo, também em 2030, quando o pinheiro bravo ocupa actualmente 1 083 milhões de hectares! Na linha desta batota de palavras, é altura de perguntar ao Governo (o ministro tem, como se viu desde o início, uma margem de manobra muito limitada) se, pela mesma “lógica”, vai ser publicada uma lei proibindo a plantação de “novas áreas líquidas” de pinheiro bravo.

2. A Reforma Florestal foi objeto de poucas propostas na sua fase de discussão pública?

Esta proposta foi colocada em consulta pública pelo Ministério da Agricultura durante um período de tempo particularmente longo. Percebeu-se porém, logo desde os primeiros momentos, que o Ministério iria organizar um conjunto de sessões sob o “patrocínio” do poder autárquico, em detrimento da audição cuidada e privilegiada dos produtores florestais e das suas Associações (que representam 97% da área florestal do País).

O sr. ministro nunca escondeu que nalguns lugares encontrou fortes críticas e oposições (técnicas e socioprofissionais) mas em muitos outros recebeu fortes aplausos (nomeadamente de autarcas) – essas divergências eram, no seu entender, a “prova” de que a Reforma estava discutida e era “boa e equilibrada”.

Não é verdade, portanto, que não tenham existido críticas (seriamente fundamentadas) e sugestões (construtivas e olhando para o futuro) sobre a forma e o conteúdo da Reforma proposta. Acontece que ela já estava pré-desenhada pelos “cérebros político-florestais” do Terreiro do Paço e foi depois “recozinhada” no Parlamento com acordos de última hora que nada tiveram a ver com a discussão pública.

3. É verdade que esta Reforma Florestal está ao nível da Reforma de D. Dinis?

Com manifesta ironia, é caso para dizer que sim, pelo simples facto de D. Dinis não ter feito, decretado, nem sequer enunciado qualquer Reforma Florestal!

Essa ideia da Reforma Florestal de D. Dinis só pode ter resultado de um conhecimento panfletário e superficial da História Florestal de Portugal. D. Dinis, trovador de mérito, político arguto, homem cultíssimo (que fundou a primeira Universidade do País e a Marinha Portuguesa e que cuidou de limitar os excessos da fidalguia sobre os seus súbditos rurais), veio a ser conhecido nos livros únicos das escolas primárias como “O Lavrador” (associando-o assim à floresta e ao Pinhal de Leiria). Porém, no primeiro volume (1980) da sua notabilíssima, única e rigorosa História Florestal, Aquícola e Cinegética, o Prof. Baeta Neves apenas lhe dedica dez entradas (de milhares que constituem a sua preciosa compilação).

O Pinhal de Leiria foi semeado (e também plantado) por D. Afonso III (1248/79), pai de D. Dinis, existindo mesmo referências de que as primeiras sementeiras, para conter o avanço das dunas, teriam já tido lugar no reinado anterior. Coube a D. Dinis proceder à regulamentação (notável e pioneira aliás), à manutenção e à defesa daquele valioso e prometedor património que no seu reinado começava já a dar “frutos”.

Fê-lo com rigor, zelo e sentido de Estado (a resina e as madeiras começavam a revelar-se matérias primas decisivas para o desenvolvimento) e deve-se-lhe a decisão visionária de alargar a sua área.

A atual Reforma padece ainda de outros “pecados mortais”, além dos enunciados. Um deles é a municipalização/”sovietização” das políticas florestais em matéria do solo privado: serão os autarcas que vão decidir que espécies florestais se poderão plantar nas propriedades privadas e onde!

A aprovação atabalhoada do diploma, no último dia de trabalho do Parlamento conduziu inevitavelmente à procura de consensos pontuais, precários e de ocasião, baseados num equilíbrio fugaz (quando comparado com o ciclo de vida de uma árvore ou floresta) que prenunciam que a Reforma não tem nenhuma probabilidade séria de ser durável. Onde ficaram, nessa madrugada, as críticas e sugestões construtivas formuladas no período de Discussão Pública? Algum Partido ou deputado teve sequer acesso a elas?

D. Dinis teve o mérito de dar continuidade ao pensamento que “gerou” o Pinhal de Leiria, de olhar o futuro e de quebrar com regras obsoletas. Não sendo isso uma Reforma, o que ficou da sua memória não tem nada que se pareça com um conjunto avulso de diplomas engendrado em equilíbrios de pequena política onde as únicas “novidades”, são técnica e politicamente absurdas, geradoras de funestas consequências económicas e sociais.

 

Secretário de Estado das Florestas no XV

Governo constitucional, de Outubro

de 2003 a Julho de 2004