Que farei quando tudo arde?


Com o país em situação de seca extrema e a bater recordes de fogos, qual é a prioridade do primeiro-ministro? Preparar-se para as cheias


Num dos mais belos poemas sobre o amor escritos em língua portuguesa, Sá de Miranda interroga-se: “Que farei quando tudo arde?” É essa a interrogação que o governo se deve colocar perante os fogos florestais que atingiram com extraordinária violência o nosso país. As imagens recorrentes do desespero das populações atingidas, que ou sofrem a perda de entes queridos ou de um momento para o outro se vêem privadas das poupanças de uma vida, demonstram claramente o colapso de um Estado. Na verdade, as funções principais do Estado são assegurar a justiça e a segurança dos cidadãos. Por isso, um Estado que não consegue garantir que as pessoas não perdem os seus haveres ou mesmo a sua vida perante qualquer fogo, e muito menos consegue averiguar porque é que os fogos ocorrem, é um Estado falhado.

Na verdade, desde o desastre de Pedrógão Grande que se esperaria que fossem assumidas as responsabilidades ao mais alto nível pela tragédia que vitimou 64 pessoas inocentes. Infelizmente, no entanto, aquilo a que se tem assistido é a um escandaloso passa-culpas em que se pretende responsabilizar os serviços, transformando-os em bodes expiatórios dos responsáveis governamentais. Foi assim que a ministra da Administração Interna apareceu em público a acusar de incompetência todos os serviços que tutela sem tirar daí a óbvia consequência, que é a sua demissão do cargo – isto no momento em que esses mesmos serviços estão envolvidos num combate sem precedentes aos fogos que todos os dias aumentam no nosso país. Haverá maior demonstração do falhanço de um Ministério da Administração Interna do que a multiplicação de tragédias enquanto os serviços do Estado permanecem impotentes para as evitar?

Mas a melhor resposta à tragédia que atingiu o nosso país foi dada pelo nosso primeiro-ministro. Primeiro, não achou naturalmente que uma catástrofe como a que ocorreu em Pedrógão Grande justificasse o adiamento das suas férias. Depois informa-nos que a sua prioridade, com o país em situação de seca extrema e a ultrapassar todos os recordes em matéria de fogos, é preparar-se para futuras cheias. Aqui está a resposta eloquente dada pelo governo da geringonça à pergunta “que farei quando tudo arde?”. Prepara-se para as cheias. Isto seria cómico se não houvesse tantos portugueses a sofrer com esta enorme tragédia.

Professor da Faculdade de Direito

da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção

das regras do acordo ortográfico de 1990