Os 75 anos são uma ocasião tão boa (ou má) como outra qualquer para rever uma obra passada à luz do pensamento presente, e “Os Cinco” também não escapam. Faz 75 anos que saiu para a luz do dia o primeiro livro de 21, aquele em que no título piscava o olho ao clássico de Stevenson, e a senhora tem levado – já não é, aliás, a primeira vez – umas fortes alfinetadas dos devotos do politicamente correto. Parece, dizem eles, que estereotipava os estrangeiros, que glorificava as elites, que embarcava numa marcada e simplista divisão dos géneros e dos seus papéis sociais, que distinguia as raças, e até lhe apontam o pecado – vejam só – de colocar no título de um livro a palavra “ciganita”, em vez de “pessoa jovem não caucasiana mas nem por isso diferente, pior ou melhor”. Ainda não chegaram ao ponto de lhe apontar a coisificação do cão ou a preferência por aventuras em castelos e ruínas em vez de ambientes de progresso, mas descanse que não perde pela demora.
Não se importe, cara sra. Blyton. Essas e outras modas passam, e a senhora fica com os seus Cinco, que perduram. Uma ou outra alfinetada até é justa, outras são puro disparate (coisa, aliás, muito frequente no politicamente correto), mas isso importa pouco, porque é lateral. O que importa muito é que eu, no fim da infância e no início da puberdade, fui muito feliz com o Júlio, a Ana, a Zé, o David e o Tim. E nunca mais deixei de o ser na memória desses dias a acompanhá-los e a crescer com eles. Não há amigo mais forte e responsável do que o Júlio, nenhuma rapariga (ai os géneros) pode ser mais dedicada e leal do que a Ana, ninguém (rapaz ou rapariga, igualando géneros) é mais curioso e audaz do que a Zé. E o David, bem disposto e criativo, há melhor do que ele? E os quatro unidos, como se fossem um só, há lá coisa melhor?
E o Tim? O Tim. Nunca houve ou haverá ser (não coisificando o cão) mais afetuoso e mais esperto, e aquela lambidela, toda ela coração e alegria, vale por todos os eventuais erros que a senhora possa ter cometido. As boas coisas que eu aprendi com estes Cinco e com a sua escrita simples e despretensiosa. O que eu sonhei de cada vez que a minha mãe me dava um livro (obrigado, mãe!). O que sonho ainda, tantos anos depois. E o que sonharam milhões como eu, e outros tantos no futuro. Que se lixe o politicamente correto e que me perdoem a ciganita ou os estereotipados contrabandistas. Para cada eventual erro, centenas de minutos de pura felicidade. E também muita aprendizagem, sobre a natureza e a sua importância, sobre a lealdade, sobre a honestidade, sobre a família e os afetos, sobre a coragem. Isso é muito mais importante. E o politicamente correto é como o calor: na dose certa, pode aquecer e dar vida, mas quando é de mais sufoca e queima. E, verdade das verdades, não foi a ausência deste pensamento da moda que a impediu de triunfar, a si, cara sra. Blyton, uma mulher de classe média num mundo de homens e de elites. Lá dizia o outro, melhor que o pensamento e o discurso, é sempre a ação.
Escreve à sexta-feira