A opacidade chamusca a verdade


O mundo mudou. Em democracia, neste nosso tempo, nenhum responsável político tem o poder de decretar o fim do que quer que seja porque há liberdade de pensamento, de expressão e de ação


Vivemos um novo tempo. Não tem nada a ver com estados de graça, com estados de alma ou com as desgraças, é o tempo do escrutínio. Pode demorar mais ou menos tempo, mas é quase impossível haver alguma ação humana, em especial na órbita da gestão pública, que não seja objeto de escrutínio e de divulgação pública. Este “mais tarde ou mais cedo sabe-se” ainda não foi incorporado por demasiada gente com responsabilidades públicas ou privadas. A opacidade pode retardar a verdade, mas esta será sempre como o azeite em água.

Foi assim com Salazar e o Estado Novo quando procuraram mascarar a tragédia das cheias de 1967 na Grande Lisboa, que provocaram mais de 700 mortos, é assim com as verdades alternativas de Donald Trump e será sempre assim quando a realidade é modelada por “leis da rolha”, pela falta de transparência ou por debilidades na assunção de responsabilidades pelo ocorrido. A opacidade, como a mentira, tem a perna curta.

É assim no tempo novo do digital, do Google e da exigência cívica, em que, mesmo com preguiças jornalísticas ou de investigação, se consegue chegar a factos, a notícias e a conclusões em abono da verdade. É claro que, neste tempo novo, o do escrutínio, haverá sempre intolerância com a liberdade de expressão, profusas narrativas de justificação e turbas de automobilizados para enxamearem as redes sociais, as contas pessoais e afins com o discurso oficioso dos oficiais, os apontamentos dos comentadores idolatrados e o destilado insulto para pseudocondicionar. Tudo energia desperdiçada na arte de maquilhar a realidade que poderia ser direcionada para construir alguma coisinha de positivo para as pessoas, para o território ou para a comunidade. A coberto do ativismo digital, certamente alimentado a megabytes, porque não deve ser avençado, surgem pontos da comunicação com a ambição de condicionarem as liberdades. São excreções da opacidade inconsequente em que, mais tarde ou mais cedo, se descobre a mão que embala o berço desta infantilidade.

O mundo mudou. Em democracia, neste nosso tempo, nenhum responsável político tem o poder de decretar o fim do que quer que seja porque há liberdade de pensamento, de expressão e de ação.

Foram o desnorte, as persistentes falhas e a dimensão da tragédia de Pedrógão Grande que geraram todas as oportunidades políticas de sinais contrários, os aproveitamentos de quem está no poder, a mumificação de quem está agora comprometido com o poder e os populismos de quem está agora na oposição. É fácil imaginar o que teria sido se as posições relativas fossem diferentes. Basta pensar que os mesmos BE e PCP que agora viabilizam a solução governativa são os que abriram as portas a PSD e CDS com o chumbo do PEC iv.

Foram as opacidades, as tentações de outros tempos na gestão da informação e as narrativas alegadamente justificativas que geraram as dúvidas que se instalaram sobre a prevenção, o socorro, as mortes e a reconstrução.

Este era o tempo para, no poder ou na oposição, revelar estofo para a situação, falar verdade e ter uma atitude de humildade consequente. Infelizmente, uma vez mais, a sobrevivência política sobrepõe-se aos interesses do apuramento da verdade, das respostas para as pessoas, do respeito pela memória dos que partiram e do reconhecimento pelo papel das mulheres e dos homens dos bombeiros voluntários e do restante dispositivo de proteção civil – dispositivo quantas vezes abocanhado nos últimos meses.

Este será sempre o tempo para exigir respostas perante as falhas do Estado, as incapacidades dos ataques iniciais, as dificuldades da reconstrução e os silêncios comprometidos com as mudanças de circunstâncias, as excecionalidades e afins.

Ainda o verão vai no adro, está montado o circo da desconfiança, que é mau demais para o moral do dispositivo, para a tranquilidade das populações e para os desafios no horizonte.

A opacidade só vai continuar a fustigar a verdade. Como as evidências dos processos do SIRESP, dos Kamov e afins tendem a revelar a presença dos mesmos protagonistas em várias fases. Qual bumerangue, as opções políticas do passado regressam à casa de partida para fustigar, no presente, quem esteve na origem dos processos, lamentavelmente para o país.

Em 2017, será sempre tempo perdido tentar mascarar a realidade. Será sempre “poucochinho” fustigar a comunicação social quando não surfa a mesma onda, enxamear as redes com narrativas acéfalas ou modelar o pensamento em função das circunstâncias.

Em 2017, sem liderança política, sem comando e sem coerência, enfrentar a normalidade ou a excecionalidade não está fácil.

 

Notas finais

Contraditório Não faz sentido o Estado querer descentralizar competências e meios do poder central para as autarquias locais, numa lógica de proximidade, quando se centralizam balcões bancários, estações dos CTT e farmácias de serviço.

Contradição Não faz sentido reafirmar o compromisso europeu nos discursos e depois, quiçá por receio de falta de apoio parlamentar, Portugal ser o país da União Europeia com mais processos de infração (60) por atrasos na transposição de diretivas europeias.

Tradição Discutir fora de tempo. Não faz sentido a discussão sobre se o ano letivo deve ter apenas dois períodos em vez dos tradicionais três quando já está divulgado o calendário escolar para 2017/2018.

Pretensa inovação A CGD, banco público, suposto serviço público, foi fraca com os fortes e é agora forte com os mais fracos ao aumentar as comissões cobradas. O que nos traz à memória os aumentos das taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde, entre 2011 e 2015. Agora como no passado, a culpa não é de quem o faz, é da maioria que o viabilizou, com a nomeação.

 

Escreve à quinta-feira