Vítimas dos resultados


Curioso que entre a euforia e a anestesia, alguma imprensa se entretenha a digladiar-se entre si, ao jeito de “espelho meu, espelho meu, há alguém mais deontológico do que eu”, como se não houvesse telhados de vidro em todos os quadrantes


Depois de o défice orçamental de 2016 ter ficado nos 2,1%, de o crescimento no primeiro trimestre ter atingido os 2,8% e da recomendação da Comissão Europeia para que Portugal seja retirado do procedimento por défice excessivo, a euforia do discurso político foi estranhamente refreada. A dúvida é se o foi porque há noção da fragilidade da realidade positiva alcançada ou se resulta de cautela para baixar expetativas negociais do Orçamento do Estado para 2018. Num caso ou noutro, foram dados passos simbólicos e reais, em alguns casos de duvidosa sustentabilidade, de medidas políticas que se demarcam das concretizadas pelo anterior governo PSD/CDS, tudo no quadro das regras do Tratado Orçamental. É claro que a austeridade mitigada persiste, com uma ação que nem sempre converge com a narrativa, mas as consequências dos resultados alcançados permitem concluir que é possível haver alternativas aos cortes cegos e gerar margem de ação dentro das regras do Tratado Orçamental. O quinhão que está em disputa no leilão mediático de exigências e nas rondas negociais pré-orçamentais à esquerda é o resultado dessa margem de manobra e de um crescimento económico que não resulta, no essencial, do principal fator que era enunciado como potencial catalisador da situação em Portugal: o consumo privado.

Virtuosamente, governo, apoiantes da solução governativa e oposição acabam por ser vítimas dos resultados. O governo, porque vai ter de enfrentar uma feroz negociação com os partidos que o sustentam, na linha do “queremos mais, sempre mais”. Os partidos que apoiam a solução governativa, porque vão reclamar o usufruto de uma margem que não resultou do seu impulso, ainda por cima no quadro do maldito Tratado Orçamental. A oposição, porque continua desnorteada, a leste do quadro político resultante das eleições legislativas de 2015.

Com as eleições autárquicas no horizonte, este é o período de toda a verdade. O que for verdadeiramente importante para quem apoia o governo deve ser apresentado como parte integrante do Orçamento e pressuposto do correspondente sentido de voto. O que for fundamental para quem não apoia o governo deve constar das propostas alternativas a apresentar em sede de processo legislativo do Orçamento do Estado. Tudo o que ficar de fora e não condicionar o sentido de voto não passará de desqualificada narrativa política integrante dos jogos florais. Meras táticas tradicionais e pré-eleitorais que não dignificam a política e os políticos.

Num contexto de crescimento económico com resultados potenciados pelo turismo, em que muitos fatores não controlamos, com a persistência de metas europeias a cumprir e com um sentido em que não é aconselhável somar incerteza à fragilidade do momento europeu e mundial, o terreno do jogo político, mesmo com as habilidades da conjuntura, afigura-se duro. Não será fácil manter o crescimento, o cumprimento dos compromissos europeus e a confiança, com o nível generalizado de apetites de uma situação oposicionista de quem apoia o poder, que persiste na crença de que é possível o bife do lombo sem que o animal tenha osso.

Curioso que entre a euforia e a anestesia, alguma imprensa se entretenha a digladiar-se entre si, ao jeito de “espelho meu, espelho meu, há alguém mais deontológico do que eu”, como se não houvesse telhados de vidro em todos os quadrantes. Enquanto se entretêm em guerras de alecrim e manjerona, folgam os protagonistas políticos e a realidade.

A quadra é dura e para círculo da realidade será preciso fazer um desenho?

 

Notas finais

No alvo. O estudo da possibilidade de aproveitamento e valorização das reservas nacionais de lítio foi uma boa iniciativa do governo e do secretário de Estado da Energia, como demonstram os 30 pedidos de direito de prospeção e pesquisa já apresentados. É o princípio de um caminho em que as mais-valias da transformação do minério usado nas baterias dos veículos elétricos não fiquem todas fora do país.

Bicudo. A Agência Portuguesa do Ambiente, apesar dos alertas, não interveio nem deixou intervir para que os diques do Mouchão da Póvoa não entrassem em colapso. Com evidentes danos ambientais para o Mouchão, para a navegabilidade do rio Tejo e para as margens nas imediações, o governo, tarde e a más horas, respondeu aos partidos que apoiam a solução governativa com a disponibilidade de financiamento do fundo de emergência. Agora, depois da negligência e do desleixo da administração central, quer empurrar para a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira o pagamento de parte da intervenção.

Ao lado. Não é positivo o ambiente que se vive na PSP, na GNR, no SEF e na Proteção Civil, em vésperas de mais um pico turístico com o verão e no início da fase Bravo da época especial de combate a incêndios florestais. Os resultados têm aparecido mas, a partir de um determinado limiar de desmotivação, instabilidade e falta de meios, só por milagre.

Indignação modelada. Parece que estamos a perder a capacidade de nos indignarmos com a barbárie dos ataques terroristas, das mortes no Mediterrâneo ou das derivas ditatoriais. Na Venezuela, com milhares de portugueses e lusodescendentes a sofrer, a esquerda amocha perante a situação das liberdades e das condições de vida, em nome da ideologia. Em Manchester, o terror elevou o nível da ação, no público-alvo – crianças e jovens – e no número de mortes, mas quando comparada a mobilização social da indignação com a registada nos atentados à redação do jornal “Charlie Hebdo”, em Paris, fica-se com a sensação de que estamos a esmorecer a reação perante a barbárie. E, no Mediterrâneo, as mortes continuam.

 

Militante do Partido Socialista, Escreve à quinta-feira