Uma solução à procura de um problema?


Os progressos da ciência em Portugal são impressionantes, muito par além do que seria imaginável quando Mariano Gago iniciou a mobilização da comunidade científica em meados dos anos 80


O Celebra-se hoje o primeiro Dia Nacional dos Cientistas, coincidindo com a data de nascimento de Mariano Gago. Sendo um momento para comemorar a sua visão e reconhecer o papel dos cientistas, é também uma oportunidade para reflectir sobre o futuro da ciência em Portugal. Nestes momentos, e como fundamentação para o investimento em ciência, discute-se o papel social da ciência, a sua importância para a cidadania, e o impacto na economia. 

É assim particularmente interessante reler o ensaio de Abraham Flexner, “The usefulness of the useless knowledge”, publicado em 1939 na Harper’s Magazine  (tradução portuguesa Ed. Faktoria dos Livros, 2016), e republicado recentemente na Princeton University Press acompanhado por um outro ensaio de Robbert Dijkgraff, director do Institute for Advanced Study (IAS) em Princeton, New Jersey. 

No seu ensaio, Flexner enfatiza a importância da procura do conhecimento sem restrições e sem barreiras, em instituições que se assumam como um “paradise for scholars”. Estas instituições protagonizarão as revoluções e as grandes descobertas científicas, que resultam inevitavelmente em novas aplicações e tecnologias. 

Flexner foi o mentor e o primeiro director do IAS. Atraiu Einstein, Von Neumann e Panofsky a que se seguiram inúmeros académicos e visitantes de todo o mundo. O IAS lançou a revolução nuclear e a revolução digital confirmando a visão de Flexner. Por ocasião da sua morte, um artigo na primeira página do New York Times de 22 de setembro de 1959 afirmava que “No other American of his time has contributed more to the welfare of this country and of humanity in general”. Revolucionou o ensino da medicina com o seu relatório de 1910, e, ao acolher os melhores cientistas de toda a Europa, criou o enquadramento para mais académicos se transferirem para as universidades americanas. Com a ajuda dos movimentos totalitários na Europa, moveu o “centro de massa” da investigação científica para os Estados Unidos. Percebeu que as instituições e os países que promovem a liberdade de investigar, com os meios e a autonomia para responder a questões fundamentais, representam uma forte ponto de atracção para o talento, o ingrediente crítico para a ciência e a tecnologia contemporâneas. 

O portfolio da investigação científica de um país, tal como uma carteira de investimentos na metáfora de Dijkgraff, deve ser diversificado. Por um lado, deve responder a questões urgentes, como as alterações climáticas, a energia ou o cancro. Por outro lado, não deve esquecer que, no passado, as revoluções aconteceram como resultado de questões fundamentais, aparentemente sem qualquer utilidade ou relevância práticas, mas cuja solução conduziu a aplicações revolucionárias. O laser é um exemplo paradigmático. Após a sua demonstração em 1959, foi descrito como “Uma solução à procura de um problema”. Hoje é inquestionável o seu impacto tecnológico e económico. Como afirmava o Prémio Nobel da Química George Porter, citado por Dijkgraff, a dicotomia, a existir, é apenas entre “applied science and not-yet-applied science”. 

Os progressos da ciência em Portugal são impressionantes, muito para além do que seria imaginável quando Mariano Gago iniciou a mobilização da comunidade científica em meados dos anos 80. Hoje, fruto de uma comunidade mais alargada e mais exigente, a ambição e as expectativas são ainda maiores. O desafio da quantidade (de doutorados, artigos científicos, e de muitos outros indicadores) foi claramente vencido. Os desafios ao ecossistema científico português estão agora do lado dos resultados, das instituições, e do talento. Estes desafios são complexos e, para serem ultrapassados, requerem uma diversidade de percursos, de experiências, e de redes muito mais abrangente, obrigando a uma abertura mais acelerada das instituições. 

O actual contexto, em que países com forte tradição científica são abalados por movimentos populistas, pode representar uma oportunidade para Portugal. As instituições podem acelerar o seu processo de abertura com uma visão ambiciosa. Esta visão deve ser intransigente na qualidade do talento, do funcionamento das instituições, das questões científicas e dos resultados, também assumindo que, como Abraham Flexner escreveu, “a livre perseguição do conhecimento inútil mostrará que tem consequências no futuro como teve no passado”.

Luís Oliveira e Silva 

Professor Catedrático do Departamento de Física

Presidente do Conselho Científico

Instituto Superior Técnico

 


Uma solução à procura de um problema?


Os progressos da ciência em Portugal são impressionantes, muito par além do que seria imaginável quando Mariano Gago iniciou a mobilização da comunidade científica em meados dos anos 80


O Celebra-se hoje o primeiro Dia Nacional dos Cientistas, coincidindo com a data de nascimento de Mariano Gago. Sendo um momento para comemorar a sua visão e reconhecer o papel dos cientistas, é também uma oportunidade para reflectir sobre o futuro da ciência em Portugal. Nestes momentos, e como fundamentação para o investimento em ciência, discute-se o papel social da ciência, a sua importância para a cidadania, e o impacto na economia. 

É assim particularmente interessante reler o ensaio de Abraham Flexner, “The usefulness of the useless knowledge”, publicado em 1939 na Harper’s Magazine  (tradução portuguesa Ed. Faktoria dos Livros, 2016), e republicado recentemente na Princeton University Press acompanhado por um outro ensaio de Robbert Dijkgraff, director do Institute for Advanced Study (IAS) em Princeton, New Jersey. 

No seu ensaio, Flexner enfatiza a importância da procura do conhecimento sem restrições e sem barreiras, em instituições que se assumam como um “paradise for scholars”. Estas instituições protagonizarão as revoluções e as grandes descobertas científicas, que resultam inevitavelmente em novas aplicações e tecnologias. 

Flexner foi o mentor e o primeiro director do IAS. Atraiu Einstein, Von Neumann e Panofsky a que se seguiram inúmeros académicos e visitantes de todo o mundo. O IAS lançou a revolução nuclear e a revolução digital confirmando a visão de Flexner. Por ocasião da sua morte, um artigo na primeira página do New York Times de 22 de setembro de 1959 afirmava que “No other American of his time has contributed more to the welfare of this country and of humanity in general”. Revolucionou o ensino da medicina com o seu relatório de 1910, e, ao acolher os melhores cientistas de toda a Europa, criou o enquadramento para mais académicos se transferirem para as universidades americanas. Com a ajuda dos movimentos totalitários na Europa, moveu o “centro de massa” da investigação científica para os Estados Unidos. Percebeu que as instituições e os países que promovem a liberdade de investigar, com os meios e a autonomia para responder a questões fundamentais, representam uma forte ponto de atracção para o talento, o ingrediente crítico para a ciência e a tecnologia contemporâneas. 

O portfolio da investigação científica de um país, tal como uma carteira de investimentos na metáfora de Dijkgraff, deve ser diversificado. Por um lado, deve responder a questões urgentes, como as alterações climáticas, a energia ou o cancro. Por outro lado, não deve esquecer que, no passado, as revoluções aconteceram como resultado de questões fundamentais, aparentemente sem qualquer utilidade ou relevância práticas, mas cuja solução conduziu a aplicações revolucionárias. O laser é um exemplo paradigmático. Após a sua demonstração em 1959, foi descrito como “Uma solução à procura de um problema”. Hoje é inquestionável o seu impacto tecnológico e económico. Como afirmava o Prémio Nobel da Química George Porter, citado por Dijkgraff, a dicotomia, a existir, é apenas entre “applied science and not-yet-applied science”. 

Os progressos da ciência em Portugal são impressionantes, muito para além do que seria imaginável quando Mariano Gago iniciou a mobilização da comunidade científica em meados dos anos 80. Hoje, fruto de uma comunidade mais alargada e mais exigente, a ambição e as expectativas são ainda maiores. O desafio da quantidade (de doutorados, artigos científicos, e de muitos outros indicadores) foi claramente vencido. Os desafios ao ecossistema científico português estão agora do lado dos resultados, das instituições, e do talento. Estes desafios são complexos e, para serem ultrapassados, requerem uma diversidade de percursos, de experiências, e de redes muito mais abrangente, obrigando a uma abertura mais acelerada das instituições. 

O actual contexto, em que países com forte tradição científica são abalados por movimentos populistas, pode representar uma oportunidade para Portugal. As instituições podem acelerar o seu processo de abertura com uma visão ambiciosa. Esta visão deve ser intransigente na qualidade do talento, do funcionamento das instituições, das questões científicas e dos resultados, também assumindo que, como Abraham Flexner escreveu, “a livre perseguição do conhecimento inútil mostrará que tem consequências no futuro como teve no passado”.

Luís Oliveira e Silva 

Professor Catedrático do Departamento de Física

Presidente do Conselho Científico

Instituto Superior Técnico