Enquanto desabafo de café, emocional, faz sentido: afinal, o tempo em que éramos jovens era o melhor de todos. A reescrita do passado enquanto lugar de prazeres etéreos é um mecanismo automático e algum esquecimento é preciso para continuar a marcha da vida dos povos.
Veja-se a Europa: foi preciso uma grande dose de esquecimento para trancar os traumas da II Guerra Mundial num poço, pôr uma pedra em cima e, sobre essa pedra, construir uma nova igreja – a da Europa como lugar primeiro da solidariedade, teoria agora em fim de ciclo.
Infelizmente, as memórias de passados felizes são coisas íntimas e humanamente compreensíveis que não resistem à lógica, à estatística e à política. Esta semana, no lançamento da edição definitiva de “O Canto e as Armas”, de Manuel Alegre, que foi publicado pelo primeira vez faz agora 50 anos, Alegre desabafava que “é muito difícil transmitir às novas gerações o sufoco daquele tempo”. Nada mais verdadeiro. É, aliás, quase impossível.
Como explicar que havia uma ditadura, uma guerra colonial, caixões de Pedros soldados, uma pobreza assustadora, uma classe média assustada e remediada, uma função pública que tinha de assinar um papel a declarar a sua aversão ao comunismo? Onde as mulheres tinham um bocadinho mais de direitos do que os animais têm hoje? Esse país que hoje parece intangível, incompreensível, quase uma lenda para as gerações mais jovens, era o que havia há 50 anos.
“O Canto e as Armas” é o retrato bruto desse país, feito por um poeta muito jovem e combatente. Mas esse tempo negro foi também o tempo dos homens excecionais. Manuel Alegre é um desses homens excecionais que o país – e as gerações mais jovens – devia saber homenagear condignamente. Mas, se calhar, muitos não percebem. Nem o percebem. Mas os poetas têm a dádiva de também não precisar disso.