Geração imparável. “Já passou mais  um ano e ainda não  dei a volta ao mundo”

Geração imparável. “Já passou mais um ano e ainda não dei a volta ao mundo”


A carreira profissional já não é uma prioridade para todos, os planos de criar uma família ficam adiados para mais tarde. Pelo mundo, diz-se que são jovens irrequietos, imparáveis. Mas será que são?


Chamam-lhes “millennials” porque nasceram na viragem do milénio. Uma grande parte desta geração teve oportunidade de concluir uma formação superior, cresceu com uma grande familiaridade com os novos meios de comunicação, informáticos e digitais, mas vive num contexto de indefinição e incerteza.

A carreira profissional já não é uma prioridade para todos e os planos para constituir família ficam adiados para mais tarde. O dinheiro importa mas é para melhorar a qualidade de vida e não pela cegueira de possuir coisas. Pelo mundo, diz-se que são jovens irrequietos, imparáveis. E em Portugal?

O i vai publicar, nas próximas semanas, um conjunto de artigos sobre as ambições, preocupações e dificuldades destes jovens, hoje entre os 22 e os 35 anos.

O sociólogo Elísio Estanque considera que os jovens desta geração – a que nos referiremos como “geração i” – debatem-se com mudanças muito significativa no mundo do emprego e da atividade profissional. O professor da Universidade de Coimbra assinala que estes jovens cresceram num contexto de grande flexibilização das relações de trabalho, de globalização da economia e da digitalização. O contexto é de “risco e indefinição, de bloqueio de expectativas e de grande perplexidade”, afirma Estanque. Para o sociólogo, não há dúvidas: estes jovens estão numa numa espécie de “encruzilhada”, em que tudo é indefinido. “O conceito de carreira profissional está em desaparecimento, as ideias de futuro parecem estar acorrentadas e condicionadas.”

Hoje, falamos de um dos impulsos perante a incerteza. Sair da zona de conforto para conhecer o mundo e em busca de si próprios.

Os imparáveis

Rui Coelho tem 24 anos, é de Viana do Castelo e lembra que o seu fascínio por viajar começa logo em criança, quando ia a Amarante, de quinze em quinze dias, cortar o cabelo. “É claro que não cortava o cabelo com essa regularidade, mas o meu pai era de lá, usávamos isto como pretexto”.

Licenciado em Biologia, não sabe ao certo o que a vida profissional lhe reserva. Entretanto, já fez de tudo um pouco, desde cuidar de vacas quando trabalhava numa quinta nos Alpes suíços, a ser guia turístico pelas paisagens do Gerês.

A grande paixão é a escrita e já foi premiado pelo talento mais do que uma vez. Os trocos que junta são para as viagens que planeia: já visitou grande parte da Ásia e já sonha com os próximos destinos.

Rui fala de uma geração “abençoada” por muitos lugares do mundo ainda se manterem puros o suficiente para lhe ensinarem a ser e a estar de forma diferente, apesar de a globalização existir. Este é um dos motivos para os millennials quererem desbravar o mapa-mundo. “Há sítios que ainda não se perderam como o nosso Porto ou Lisboa, que estão a ficar cidades turísticas. Hoje, neste tipo de cidades, muitas vezes apanhas um avião e sentes que não saíste do mesmo sítio: as lojas são as mesmas, as pessoas falam todas inglês, os restaurantes são todos iguais e não há nada de novo”.

Para Rui, as memórias da cidade de Amarante, que descobria em miúdo, são comparáveis ao que sente hoje quando ruma a um lugar remoto. “Viajar até a Amarante ou até ao Nepal tem o mesmo sabor, porque o fascínio de viajar de quando era puto vinha pelos lugares valerem-se a si mesmos”, diz. “Não é tanto a ânsia de andar de um lado para o outro, é mais o encanto de chegar a um lugar com uma identidade”.

Tiago Pinho, de 27 anos, é de Sever do Vouga mas está em Lisboa desde os 22. Quando era mais novo, “não percebia muito bem como é que os nossos antepassados tinham descoberto o mundo se eu não ouvia as pessoas à minha volta falarem em viajar, era bué estranho”, conta, sem esconder as palavras que a “geração i” usa inconscientemente e a demarcam dos mais velhos.

Foi ainda em adolescente que Tiago começou a imaginar-se a fazer grandes viagens pela Europa, a planear “road trips” com os amigos e assim que começou a ganhar dinheiro, fez por concretizar todos os projetos. A trabalhar aqui e ali enquanto estudava, a carreira profissional nunca fez parte do menu do dia. Reinou sempre a ansiedade de “não estar a viver completamente”.

O medo de envelhecer e de não gozar a vida “como deve ser” criam uma pressão que é o mote energético para mais uma jornada fora de casa, explica.

Com esse embalo, Tiago já foi de Marrocos à Costa do Marfim sozinho, passando por oito países a usar apenas transportes públicos. E já fez outras viagens, mas mesmo assim não chega. Sente-se assombrado pela rapidez com que o tempo passa: “dou por mim a pensar já passou mais um ano e ainda não dei a volta ao mundo”, sorri. Para os millenials como o Tiago, uma coisa é certa: não gostam do que está pronto a consumir. No caso das viagens e do turismo massificado, pior um pouco. “Gosto de ir e conhecer a forma como as pessoas vivem, conhecer a cultura, respeitar as tradições dos sítios”.

A constante insatisfação é uma sensação partilhada por Ângela Pereira, de 24 anos, que está agora no Vietname. A semente que daria origem a uma viajante imparável foi alimentada pela curiosidade inata mas também pelos pais que a levaram sempre a viajar em família.

“Faz parte da minha personalidade a constante insatisfação”, explica Ângela. “Não é repúdio à rotina mas, se os dias se tornam muito parecidos, começo a sentir-me doida”.

A jovem de Torres Vedras licenciada em Ciências da Comunicação, diz que a felicidade “tem passado muito pela incerteza, pela descoberta, pelo novo.” Despediu-se do trabalho que tinha, interrompeu o mestrado e foi, no ano passado, sozinha durante três meses para a África do Sul. Hoje, considera que fez uma boa escolha para a sua primeira grande viagem sozinha, mas admite que se mandou de cabeça. E ao início foi complicado. “Não que tenha batido no fundo, mas andei ali a patinar. Foi um choque, mas acho que aprendemos com as dificuldades e é assim que crescemos. Tomei-lhe o gosto e fez-me abrir os olhos para a realidade”.

Assim que voltou a Portugal, Ângela já tinha a ideia de trabalhar durante o verão para voltar à estrada. Despediu-se novamente e mandou-se numa aventura pela Ásia. Para Ângela esta geração está a mudar a forma de estar no mundo, a mudar um ciclo. “Já não compramos casa, trabalhamos a recibos verdes, a sociedade em si empurra-nos para esta incerteza, tudo é inconstante. Eu sinto que estamos a contrariar o passado, tornamo-nos cada vez mais espirituais e damos valor a coisas que os nossos pais não davam”.

Rui Coelho, o jovem vianense, concorda com Ângela. Depois de ter feito sete vezes várias etapas do Caminho de Santiago, considera que a viagem é um processo espiritual e de autoconhecimento. “A nossa geração é muito diferente da dos nossos pais. A nossa infelicidade e o estado precário das coisas abrem portas para muitos caminhos”.

Os três jovens concordam que a “geração i” quer cortar com aquilo que eram as necessidades das gerações passadas, acima de tudo por não concordar com elas. Rui não tem meias palavras: para ele, a geração dos pais pode ser descrita como disfuncional. “Eles eram ricos e não sabiam, eram cegos pelo ‘ter coisas’. Mas nós vimos que viveram uma mentira, crescemos a vê-los afundar, a perder o que compraram com dinheiro que não tinham, a divorciar-se de pessoas que não amavam. Então porquê acreditar no estilo de vida deles?”.

Micael Azevedo, de 27 anos, tem a mesma opinião. Desistiu da faculdade quando foi de intercâmbio para o Brasil. “Estava farto de ‘power points’, queria ver o mundo. Decidi ir para o Brasil por esse motivo mas chego lá e levei outra vez com o mesmo estilo de ensino. Pensei: vou viajar pelos países aqui à volta.”

Ninguém quis ir com ele, por isso foi sozinho. É isto que fazem os “imparáveis” da “geração i”. O jovem natural do Porto, começou por visitar família que tinha no Rio de Janeiro e a seguir foi conhecer o resto da América do Sul. Chegou a viver numa comunidade indígena como intérprete de português/inglês e quando voltou a Portugal sentiu que tinha de voar outra vez.

Hoje já passaram seis anos desde que saiu de Portugal, onde vem sempre de passagem apenas matar saudades e agora está na Bulgária, onde trabalha numa companhia aérea. Para Micael, “é preciso uma boa dose de loucura para sermos felizes”. Mas também é preciso algum tino."Cheguei a dormir na praia, a cantar na rua para desenrascar, mas sempre soube que, se precisasse, tinha uma família para onde voltar”. O ímpeto para querer sempre descobrir mais assenta numa ideia simples: vivemos num planeta com “infinitos sabores para provar, cheiros diferentes, pessoas e línguas novas para conhecer. Não quero saber do número de países que já conheci mas sim do que aprendi em cada um”.

Rita, 23 anos, é do Porto e está neste preciso momento sozinha a viajar pela América Central. Agora encontra-se na Costa Rica, onde tem estado a trabalhar em troca de estadia. Em breve segue para a Nicarágua e ainda não sabe se irá fazer voluntariado ou continuar a trabalhar em troca de teto.

Sair da zona de conforto sempre fez parte dos planos. Até porque se sente inconformada com a situação do país: quando voltou a Portugal no meio de uma das suas várias viagens, tentou encontrar trabalho mas sempre sem efeito.

Cansada de enviar currículos, decidiu que manter-se pela estrada era uma melhor opção. Agora tem um lugar na internet “onewayticket.website” onde partilha as suas aventuras juntamente com os amigos com quem viajou à boleia mais que uma vez.

Há quem viaje para se conhecer, há quem esteja viciado na adrenalina de conhecer o que está longe, há quem goste da incerteza, mas para Inês Vouga, 27 anos, especializada em Economia Social, as viagens têm de ter um caráter interventivo. Ou não fossem as causas outro motor dos millennials.

Inês passou por vários países, em África e na Europa, e sente que faz parte de uma geração cada vez mais irrequieta, resultado da constante informação com a qual é bombardeada desde sempre. É responsável por projetos de intervenção social a nível local e internacional e sente que, neste momento da sua vida, quase dez anos depois de ter iniciado a sua jornada por vários lugares e contextos sociais, sente que pode fazer a diferença estando na sua cidade.

Inês acha gritante a desigualdade social dos nossos dias e espera que a sua geração possa fazer a diferença. “Espero que daqui a dez anos olhemos para esta geração e vejamos os resultados de uma geração irrequieta”.