Tenho muitas vezes uma história dentro da cabeça a que um dia gostava de dar papel. É o relato sobre alguém devotado a uma causa e a um grupo de pessoas que acaba por ser vítima de quem deseja ajudar a libertar, perdendo-se na voragem de uma violência, aparentemente irracional, que expressa uma outra forma de opressão, pela gente que supostamente são os seus. Isto pode-se passar em cenários dramáticos, como numa guerra, ou até numa casa de militantes em que os dois combatem pela emancipação social, mas a mulher não deixa de ser subjugada e até agredida pelo seu companheiro. A pergunta subjacente à história é se o “amor” também pode ser uma forma de poder e luta de classes. E se a libertação de todos decorre apenas de uma maior igualdade social. Há quem defenda que questões como a violência sobre as mulheres e o predomínio dos homens no lugar de poder se resolveriam automaticamente pela emancipação social no quadro da luta de classes. É evidente que a falta de poder e autonomia condiciona em muito a libertação das mulheres no quadro da exploração a que são sujeitas nesta sociedade capitalista, mas essa opressão não se resume à desigualdade económica. Os próprios “pais” do marxismo estavam cientes disso: numa conhecida carta, Engels alertava contra interpretações totalmente mecanicistas e economicistas do materialismo dialético e histórico que ele e Marx tinham elaborado. Para eles, a luta de classes não se resumia à economia, e nela sublinhavam a força material das ideias na vida. “Segundo a conceção materialista da história, o momento em última instância determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmámos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que o momento económico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda.” Explicando, as ideias, conceções, leis, ideologias “exercem também a sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente a forma delas.”
A filosofia costuma falar de “princípios”, mas nós aparecemos quando a festa já vai a meio. Nunca estamos no início, entramos num comboio em andamento. Surgimos imersos em palavras. São elas que medeiam entre nós e a realidade, de uma forma em que nada parece existir sem elas. As palavras, formadas e encadeadas há muito, parecem criar o que pensamos ou, pelo menos, dão uma forma ou uma estante que suporta o que sabemos. “No princípio era o Verbo.” Na Bíblia diz-se que Deus criou as coisas dando-lhes nomes. Foram os nomes que criaram as coisas, recuperaram-nas ao infinito sem forma e tornaram-mas limitadas, percetíveis e vivas. Elas até podiam lá estar, mas não existiam. O “ser” depende de serem pensadas, de se recriarem como sujeitos, e isso começava na sua enunciação, ou melhor, ao serem incorporadas, pelos próprios, como se de um mantra se tratasse. De tanto se repetirem e burilarem o que já tinham dito, ganhavam a consciência de o ser. Passavam do andar sem sentido para uma ação e um movimento capaz de criar algo, de acrescentar um ponto à superfície no mar do tempo. “A poesia é que recapitula o mundo/ chamando em cada chama/ pela chama de cada sílaba”, relembra o poeta Manuel Gusmão.
Não há paixão que não comece na declaração de um sentimento, não há revolução que não passe por afirmar a sua rutura.
As palavras têm a sua própria luta de classes, existem numa permanente disputa. Quando vemos os partidos xenófobos europeus intitularem-se da “liberdade”, entendemos aquilo que já se tinha percebido quando víamos os banqueiros do sistema falarem no “mercado livre”, em liberalizar o mercado de trabalho, em desregulamentar todas as esferas da vida social, para empobrecer as pessoas e diminuir os salários. A liberdade do mais forte nunca é a liberdade da maioria. Não há nada melhor para derrotar um inimigo que roubar-lhe o poder das palavras. Esta luta tem histórias, batalhas e emboscadas. Destutt de Tracy criou a palavra “ideologia” como alguma coisa que seria uma espécie de zoologia das ideias. Napoleão referia-se depreciativamente aos tipos que publicavam artigos contra ele como “os ideólogos”, um conjunto de indivíduos irrealistas e pouco práticos. Como de costume, o sentido da palavra inclinou-se para o lado mais forte. Processo contrário fizeram os ativistas quando retomaram e retornaram a palavra “queer”, termo pejorativo que pretendia estigmatizar como estranhos um conjunto de pessoas, fazendo de um insulto uma forma de reforçar uma identidade em luta.
As ideias que legitimam pelo silêncio e pelo hábito a submissão das mulheres na nossa sociedade, a sua falta de representatividade em lugares de poder, a criação de perfis e papéis que lhes são ditados pelo machismo e a sua sujeição na vida não se esgotam na exploração económica. A luta por um outro quadro de vida não passa só por aí. A criação de sujeitos sociais passa pela luta de classes e pela luta no domínio das ideias. Elas existem num mesmo tempo e uma não é menos importante que a outra. É tão “material” uma opressão de classes como uma opressão patriarcal ou racista. Todas elas são instrumentos de sujeição que reforçam o poder de uns sobre muitos.
No sábado passado assinalaram-se 146 anos sobre a revolta da Comuna de Paris, a primeira tentativa das classes populares de conquistarem o poder. Esta tentativa de tomar os céus de assalto, usando a expressão de Marx, foi afogada em sangue. “Os mortos do lado de Versalhes [onde estava o quartel-general das forças contra os operários e populares que tomaram a cidade] foram um ínfimo punhado, todos eles tiveram milhares de vítimas imoladas pelas suas mãos; do lado da Comuna, as vítimas foram sem nome e sem número; não se pode contabilizar pedaços de cadáveres; as listas oficiais falam de 30 mil, mas mais de 100 mil deverá estar mais perto da verdade”, escrevia, anos depois, a militante da Comuna Louise Michel, a mesma que respondeu em tribunal aos juízes que tinham mandado fuzilar milhares de homens e mulheres sobreviventes: “Já que, segundo parece, todos os corações que batem pela liberdade só têm direito a um pouco de chumbo, reclamo a minha parte! Se me deixares viver, não cessarei de clamar vingança”, disse perante um tribunal que tentava, em vão, silenciá-la.
O conceito da efeméride parece conter o mofo do esquecimento, é algo que se repete eternamente até ficar apenas uma forma cerimonial, extirpada de todo o conteúdo subversivo. Tirou-se dela todo o movimento vivo e ficou apenas uma repetição entorpecedora. Mas, olhando com atenção, existe um caudal de história imerso nela, uma espécie de vida que nos cabe redimir, não por efeméride, mas por atos. Toda a luta de emancipação social tem homens e mulheres.