Ana Margarida de Carvalho, uma das mais admiráveis escritoras a notabilizarem-se no panorama literário nacional, partilhou hoje na sua página pessoal do Facebook uma mensagem em que diz que se sentiu "destratada e desconsiderada e humilhada e coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável", terminando assim da forma mais inglória uma carreira de 24 anos no jornalismo.
Vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela APE com o seu romance de estreia, "Que Importa a Fúria do Mar" (livro que tinha sido finalista do Prémio Leya), publicado em 2013, pela Teorema, já este ano publicou na mesma editora o romance "Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato". Além de, com apenas dois títulos, se ter firmado como um dos nomes mais seguros da ficção portuguesa, ao longo dos anos assinou reportagens que lhe valeram sete dos mais prestigiados prémios do jornalismo português, entre os quais o Prémio Gazeta Revelação do Clube de Jornalistas de Lisboa, do Clube de Jornalistas do Porto ou da Casa de Imprensa.
Filha do também escritor Mário de Carvalho, Ana Margarida exerceu a actividade jornalística noutras publicações como a revista "Ler", o "Jornal de Letras" ou a "Marie Claire", e colaborou ainda com a SIC.
Se este caso não é de todo incaracterístico, é bem ilustrativo da degradação da profissão, num processo em que os que mais lhe deram se vêem empurrados e substituídos por "seres anónimos e transitórios". Por outro lado, a mensagem da jornalista, mais do que um mero desabafo, pinta um retrato curioso da profissão, falando da inveja de que se viu alvo por parte de alguns colegas, e de como esta se mostrou "uma força mobilizadora". Revela ainda a sua estupefacção com o "talento desmesurado para a intriga" revelado por esses colegas sem especial talento para o jornalismo e que, se infere, terão feito os possíveis para castigar a jornalista que resolveu ser uma grande escritora.
Ler mais em: http://www.cmjornal.pt/cultura/detalhe/ana_margarida_carvalho_vence_grande_premio_romance_e_novela
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Segue abaixo, na íntegra, a mensagem que a jornalista publicou no Facebook:
DEBITUÁRIO
Havia um autor famoso que dizia 'fala sobre o que quiseres, mas não escrevas sobre a vidinha'. Pois venho desobedecer-lhe, é justamente da vidinha que eu venho aqui tratar. Da minha. E quero, antes de tudo, agradecer a tantos e tantos amigos e colegas (alguns distantes) que se interessaram e quiseram saber e me telefonaram e mandaram mensagens. Nem imaginam como foi importante para mim. Não vou esquecer. Os que não me falaram, não se preocupem, eu já esqueci.
1º- Não deve haver nada mais inglório do que acabar uma carreira de 24 de jornalismo num gabinete de um director de recursos humanos.
2º- Não deve haver nada mais inglório do que ter de enfrentar sozinha um destes seres anónimos e transitórios, sem uma única palavra de explicação, de apoio e de solidariedade de quem devia e podia.
3º- Não deve haver nada mais inglório do que ser destratada e desconsiderada e humilhada e coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável.
4º- Este meu despedimento não foi a pior coisa que me aconteceu naquela redacção. Foi apenas a última.
5º- Não guardo qualquer ressentimento em relação a esta direcção. É tão má como qualquer outra anterior (sem contar obviamente com a do Carlos Cáceres Monteiro, o único director, grande-repórter, líder que conheci). Estes apenas fazem o que lhes mandam- e mal. São outros seres anónimos e transitórios. E estão assustados (no sentido brechtiano do termo)
6º- Cometi um erro: foi levar o jornalismo demasiado a sério, quando ele não queria ser levado a sério.
7º- Não, cometi, dois erros: o de a certa altura da minha vida ter colocado o jornalismo à frente de tudo. Da literatura, sim (comecei a escrever muito tarde), dos meus próprios filhos, quando eram pequenos – e isto dói.
8º- Terceiro erro (há sempre um terceiro): estava sempre tão atolada em trabalho, tão concentrada nas reportagens, nas entrevistas, numa correria, cheia de entusiasmos – o que não faz mal nenhum porque era muito nova, tinha muita energia, mas tinha muita ingenuidade também. Resultado: nunca dei conta, a tempo, de como a incompetência e falta de talento estão associadas, por sua vez, a um talento desmesurado para a intriga e para o 'mau coleguismo'. Palavra que não fazia ideia de que a inveja podia ser uma força tão mobilizadora.
9º- No jornalismo conheci as piores pessoas, as mais cobardes, as mais desleais, as mais mesquinhas, as mais medíocres, as mais desinteressantes, as mais incompetentes, as mais desonestas, algumas nem sabia que podiam existir (achava que era só nos livros, enfim)… Mas depois conheci pessoas maravilhosas que se tornaram amigas de infância. E isso vale tudo e apaga o resto.
10º- Por causa do jornalismo contactei de perto com personalidades admiráveis, fui a sítios onde jamais iria, conheci mundos outros. Nunca cometi nenhum erro grosseiro, nunca falhei um prazo, nunca me atrasei na entrega de algum trabalho… Devo-lhe muito, mas não farei as pazes com o jornalismo tão cedo. Talvez um dia. Porque o trabalho é um direito, não apenas um dever, a minha vontade é, juro, ir-me embora, sair do país, ir fazer voluntariado para um sítio longínquo e perigoso, onde não me considerem «dispensável». . Bom… depois do Natal logo vejo…
Obrigada a todos os que chegaram até aqui