Café Piolho. A alcunha fez o nome

Café Piolho. A alcunha fez o nome


Por serem muitos estudantes num espaço pequeno? Por coçarem a cabeça quando alguém ligado à PIDE entrava? Ninguém sabe. Mas que a alcunha Piolho pegou, pegou


Diz-se que riquezas fazem riquezas, piolhos fazem piolhos, mas a verdade é que este Piolho integra a parte mais rica da cidade do Porto: a sua história.

Aberto desde 1909, o verdadeiro nome deste café é Âncora d’Ouro, mas todos o conhecem como O Piolho, uma alcunha que já esteve no centro de várias discussões. Muitos dizem saber o porquê da atribuição deste nome ao estabelecimento, mas a verdade é que não existe uma versão oficial.

“Havia muitas faculdades aqui perto e os estudantes frequentavam muito este espaço. As pessoas que viviam perto do café ou que passavam aqui regularmente começaram a dizer que os estudantes que vinham para aqui estudar eram os piolhos e que todo aquele ajuntamento era uma piolhice”, explica Edgar Gonçalves, sócio do espaço.

“Depois há a versão política: além de ser um café académico, era um café político. Na altura do Estado Novo não se podia falar à vontade. Como o café tem espelhos por todo o lado, era possível ver de vários ângulos quem entrava e saía. Por isso, sempre que viam através do espelho que estava alguém estranho à porta, coçavam a cabeça para avisar os outros membros do grupo. E quem coça a cabeça tem piolhos”, acrescenta o responsável.

Há também quem diga que o nome Piolho foi criado pelos próprios estudantes, “que diziam que o espaço era demasiado pequeno para a quantidade de gente que recebia. Se alguma destas histórias é verdadeira? Ninguém sabe”, diz Edgar Gonçalves.

O que se sabe é que este foi um estabelecimento com várias estreias: segundo o mesmo responsável, o Piolho foi o primeiro café, em 1913, a ter luz elétrica – a gerência pagava 12 centavos por ano por 12 lâmpadas e duas ventoinhas – e também o primeiro a ter televisão. Além disso, é neste estabelecimento que nasce o termo “cimbalino”, o equivalente à bica lisboeta: “O Piolho foi o primeiro espaço a ter uma máquina de café expresso. Esta era italiana e da marca La Cimbali, daí o nome ‘cimbalino’”, explicou o sócio do espaço.

O “esconderijo” de Paco Bandeira Com 107 anos de história, este café foi palco de diversas peripécias ao longo de várias décadas – muitas delas passaram-se durante o Estado Novo.

“Uma vez, um cavalo da GNR entrou aqui dentro, atrás de uma pessoa que se opunha ao regime. Já imaginou o que é ter um cavalo dentro de um café?”, interroga o responsável por entre risos. Era um local onde vários discutiam os problemas políticos e sociais da altura, mas também o espaço onde alguns se refugiavam: “Paco Bandeira esteve escondido debaixo da bancada da loiça para fugir às autoridades”, afirma Edgar Gonçalves.

Ainda hoje, o Piolho é um espaço político, mas de uma forma completamente diferente: “Recebemos aqui todas as campanhas políticas – Rui Moreira fez campanha aqui, por exemplo. Uma figura que fez campanha aqui várias vezes e que chegou mesmo a organizar comícios aqui dentro foi Miguel Portas”, recorda o sócio do Piolho.

Mas este estabelecimento também recebe figuras de outras áreas: o poeta Pedro Homem de Melo era um cliente assíduo e chegou a escrever alguns versos para Amália Rodrigues sentado aqui. O escritor e jornalista Manuel António Pina também frequentava o Piolho “quase diariamente”, recorda o proprietário. O jornalista e presidente do conselho regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Carlos Magno, também é cliente desta casa.

Ponto de encontro dos estudantes Quem entra no Piolho não consegue tirar os olhos das dezenas de placas espalhadas pelas paredes. Estas foram colocadas ali pelos estudantes formados nas faculdades do Porto como homenagem ao espaço que os acolheu ao longo dos anos de estudo – há até uma placa dos alunos que não conseguiram acabar todas as cadeiras do curso.

O hábito de estudar neste café surge logo após a abertura, durante a gerência do sr. Reis Lima. Quando este vende o espaço à nova sociedade – Silva, Azevedo e Moreira -, os estudantes deixaram de poder folhear os seus cadernos naquele estabelecimento. “Os proprietários daquela altura achavam que os jovens só vinham para aqui estudar e não consumiam. Por isso, decidiram proibir o estudo dentro do Piolho”, afirma Edgar Gonçalves.

Mesmo sem a presença dos estudantes, o negócio não corria mal. “Quando eu e os meus futuros sócios chegámos aqui para conhecer o espaço ficámos surpreendidos com o que se passava dentro do estabelecimento: por volta das 15h00, o chão do café tinha um tapete feito de pacotes de açúcar. Hoje em dia temos o hábito de colocar o pacote no pires, mas naquela altura, não sei porquê, mandava-se a embalagem para o chão”, afirma o atual proprietário. A verdade é que o chão ficava coberto de pacotes de açúcar e os empregados eram obrigados, por volta das 15h00, a varrer o estabelecimento.

Mesmo assim, a atual gerência decidiu devolver a tradição do estudo ao Piolho. “Retirámos dos espelhos todos os papéis que diziam ‘Proibido estudar’ e tentámos cativar os novos alunos da Universidade do Porto”, diz o responsável. Os hábitos já não são os mesmos e, agora, o Piolho não fica cheio de estudantes ao final da tarde. “As faculdades saíram desta zona, por isso muitos estudam noutro local, mas ainda recebemos alguns.”

O Piolho está de tal forma ligado à vida académica portuense que já faz parte das praxes académicas: “Todos os anos, os mais velhos colocam os caloiros aqui à porta e dizem-lhes ‘esta é a nossa segunda casa. Na faculdade entraste por mérito próprio, mas no Piolho só vais entrar quando nós quisermos’. Depois ficam à porta, à espera que os ‘doutores’ os deixem entrar.”

Os anos passam e o mistério mantém–se: os estudantes coçavam a cabeça quando viam alguém ligado à PIDE a entrar no café ou eram os próprios alunos que pareciam uns verdadeiros piolhos a saltitar entre as faculdades e a Praça Parada Leitão? Ninguém sabe. Mas uma coisa é certa: com mais ou menos estudantes, mais ou menos placas comemorativas, a tradição académica mantém-se.