Carícias, ameaças e tentativas de suicídio. A história nunca contada do padre de Fafe

Carícias, ameaças e tentativas de suicídio. A história nunca contada do padre de Fafe


Superior contou à PJ que o padre lhe confessou que pôs a mão no pénis de um jovem.


A história tem mais de dez anos e envolve tentativas de suicídio, ameaças, cartas, rumores, transferências súbitas, reuniões de emergência entre membros do clero e precauções para evitar escândalos. O caso dos supostos abusos sexuais cometidos pelo padre Abel Maia, de Fafe, foi arquivado em Junho, mas a Polícia Judiciária (PJ)admitiu, nas conclusões da investigação, ter ficado convencida de que houve toques de cariz sexual entre o sacerdote e um jovem.
 
A tese da PJ não foi, no entanto, corroborada pelo Ministério Público (MP) de Penafiel, que considerou não existirem evidências suficientes de que esses contactos tenham existido – desde logo, porque o rapaz negou tudo. Ainda assim, o actual superior provincial (responsável) da Congregação dos Dehonianos contou aos inspectores que Abel Maia lhe terá confessado, durante uma conversa, que pôs uma vez a mão no pénis do jovem – na altura com 20 anos – por cima da roupa. 

Foi, aliás, devido a rumores sobre o envolvimento entre os dois que Abel Maia acabou transferido para Roma em 2003. O então superior da congregação, Manuel Barbosa – actualmente secretário da Conferência Episcopal Portuguesa –, admitiu na PJ ter enviado o sacerdote para um ano sabático em Itália por uma questão de precaução. 

Seis anos mais tarde, já em 2009, a história voltou a assombrar a congregação. O actual provincial, Zeferino Ferreira, revelou aos inspectores que Abel Maia lhe escreveu a pedir ajuda porque o jovem o estava a chantagear: prometia divulgar publicamente que tinham tido um relacionamento se não lhe desse dinheiro. E que o padre terá chegado a contar que já tinha feito pagamentos antes. 

Foi o padre de Caneças (Vila Nova de Gaia) que trouxe o assunto à baila, desencadeando a investigação da PJ do Porto, coordenada pelo Ministério Público de Penafiel. Roberto Carlos ressuscitou o caso no meio de um braço-de-ferro com o bispo do Porto. No ano passado, D. António dos Santos queria que deixasse Canelas e, numa carta datada de 24 de Novembro, Roberto Carlos anunciou-lhe que não iria deixar a paróquia. Avisou ainda que, se a Cúria e o vigário-geral do Porto insistissem em prosseguir com uma alegada campanha de que estaria a ser alvo – em que era acusado de ser gay e de viver com um homem – revelaria publicamente comportamentos menos próprios de sacerdotes da diocese, além de uma situação de abuso sexual cometido em 2003 por Abel Maia, pároco em Fafe. 

a carta de Roberto Carlos O bispo do Porto entregou a carta ao Ministério Público, que mandou a Judiciária investigar. Em causa poderiam estar vários crimes: aborto, coacção sexual e abusos sexuais de crianças. Na carta, que consta do inquérito arquivado que o i consultou, o padre de Canelas sugere ao bispo que averigue os comportamentos sexuais de alguns padres da diocese. Segundo os seus relatos, encontram-se às terças-feiras num ginásio gay em Gaia e aos domingos e segundas-feiras frequentam saunas homossexuais em Vigo. Roberto Carlos fala ainda em sacerdotes do Porto que pagaram abortos a mulheres que engravidaram acidentalmente e em padres que sustentam amantes.

Só depois conta a história de Abel Maia, deixando claro que a divulgaria publicamente se os problemas com a Cúria diocesana se mantivessem. Começa por relatar que o escândalo sexual terá acontecido na freguesia de Duas Igrejas, em Paredes, num centro da Congregação dos Dehonianos – uma casa chamada Bethania –, onde era diácono e onde o padre de Fafe era, à data, responsável pelos grupos missionários. Acrescentou que a vítima se tentou suicidar, que a chegou a acompanhar ao hospital e que denunciou a situação ao então superior da congregação, Manuel Barbosa. Mas Abel Maia foi mandado para Roma e tudo terá sido abafado. Roberto Carlos contou igualmente que o padre já teria antecedentes e se dizia, no início da década de 1990, que costumava tocar nos genitais dos seminaristas do Seminário de Coimbra. 

Roberto na judiciária A 3 de Dezembro de 2014, o MP de Penafiel entregou o caso à PJ do Porto. E a primeira pessoa ser ouvida no inquérito foi o padre de Canelas. Admitiu ser o autor da carta e contou aos inspectores que uma noite, em meados de 2003, ouviu barulho no exterior do centro Bethania. Na rua estava Pedro *, um adolescente com 16 ou 17 anos, transtornado e a gritar pelo padre Abel Maia. Roberto Carlos terá tentado acalmá-lo e o rapaz confidenciou-lhe que dormia com o sacerdote desde os 14 anos num palheiro perto da casa. A relação teria entretanto esfriado e Pedro não estava a conseguir lidar com o afastamento. O padre de Canelas terá então passado a acompanhar o jovem, para o ajudar psicologicamente, e transmitiu a história ao então superior da congregação, o padre Manuel Barbosa, e a um outro sacerdote, João Sousa, que era responsável pela casa. Só não apresentou queixa na polícia porque o jovem não queria. Pedro contou-lhe ainda que Abel Maia lhe tinha destruído a vida, confessando também que recebia pequenos presentes – como santos – do sacerdote. RobertoCarlos acrescentou que o jovem se tentou suicidar duas vezes e que Abel teria assumido a relação junto de algumas pessoas, entre elas João Jorge, um padre psicólogo que vivia na Bethania em 2003. 

Pedro nega tudo Pedro foi chamado a prestar declarações na PJ já este ano. Confirmou que vivia perto da comunidade Bethania e que aos 14 anos começou a frequentar e a ajudar na casa: regava os jardins, plantava árvores e organizava festas para angariar fundos. Admitiu que sempre foi muito amigo de Abel Maia, mas negou que algum dia tenha havido contactos íntimos e disse que praticamente deixaram de se ver depois de o padre ter sido transferido para Roma. O jovem – hoje com 32 anos – fez questão de acrescentar que Roberto Carlos, de Canelas, também vivia na casa em 2003. Recordou que era um simples diácono, mas que dizia repetidamente querer ser como Abel Maia, por este ser admirado e aceite pela comunidade, dando a entender que sentia ciúmes. Quanto às tentativas de suicídio, assumiu-as, mas garantiu que só se tentou matar por causa de problemas com o pai, o divórcio da irmã e por estar desempregado. 

o secretário dos bispos O padre Manuel Barbosa, à época responsável pela congregação, também foi ouvido pela Judiciária do Porto e confirmou que, em meados de 2003, o padre João Sousa, responsável pela Bethania, lhe contou que havia suspeitas de que Abel Maia poderia estar envolvido numa relação com um vizinho. Não se falava em sexo e os rumores seriam sustentados pelo facto de o jovem andar sempre atrás do padre e de serem vistos juntos muitas vezes. 

Na altura, Manuel Barbosa falou com o padre Abel Maia – que negou qualquer relacionamento, mas confessou que Pedro estava apaixonado por ele e que, por compaixão, por vezes o abraçava. Gestos que, assegurou, aconteciam por mera simpatia e nada tinham de sexual. O actual secretário da Conferência Episcopal garantiu aos inspectores que também abordou outros padres, que confirmaram os rumores, mas afirmaram nada ter visto de concreto. Por achar que não havia fundamentos para abrir nenhum processo, decidiu não fazer nada e mandar Abel Maia para Roma, de maneira a evitar complicações. Passado um ano, o padre voltou a Portugal e foi novamente transferido, desta vez para os Açores. 

As chantagens de Pedro João Jorge, o padre psicólogo, também foi chamado a falar aos inspectores da Judiciária. Disse recordar-se que no mês de Setembro de 2003, já depois de saber que Abel Maia se ia embora para Roma, ouviu dizer que o afastamento se devia a uma relação de maior proximidade do colega com um vizinho. E recordou que, pouco tempo depois, ouviu Roberto Carlos contar que Abel tinha um relacionamento com Pedro – que estava desesperado e até se tinha tentado matar. 

João Jorge recordou ainda que, seis anos depois, foi contactado pelo provincial dos Dehonianos. Zeferino Ferreira pediu-lhe ajuda. Recebera uma carta de Abel Maia, que contava estar a ser chantageado. Pedro exigia dinheiro e ameaçava denunciar publicamente que tinham tido um relacionamento no passado. O superior pediu a João Jorge que falasse com o jovem e tentasse averiguar o que se estava a passar. O padre fez então duas sessões de psicoterapia com Pedro, que lhe contou que tinha uma relação de amizade próxima com o padre Abel, sempre negando que tivesse havido sexo, mas admitindo que chegaram a trocar carícias – sem especificar de que tipo. Depois dessas duas sessões, Pedro terá parado de chantagear Abel Maia. 

a mão no pénis A versão de Zeferino Ferreira, provincial da Congregação dos Dehonianos desde 2009 e que pertence à comunidade desde 1981, confirma os rumores que circularam em 2003 do suposto relacionamento e de que o afastamento de Abel Maia para Roma teria ocorrido por precaução, ainda que nada de concreto tenha sido provado na altura. 

O provincial confirmou igualmente que, em meados de 2009 ou 2010, foi surpreendido por uma carta de Abel Maia, pedindo-lhe ajuda porque Pedro estaria a ameaçá-lo. E a chantagem seria a sério pois, para o tentar calar, já lhe tinha entregue algum dinheiro e não tinha resultado. Zeferino Ferreira ainda foi com Abel a um advogado para denunciarem a chantagem, mas o padre de Fafe acabou por não querer avançar com nenhuma queixa. 
Foi também o actual responsável dos Dehonianos quem contou à Judiciária que Abel Maia, apesar de ter sempre negado qualquer relação íntima com Pedro, admitiu que numa ocasião o acariciou na zona do pénis, por cima da roupa. E que o jovem se teria apaixonado por ele. Zeferino Ferreira revelou também que depois de o padre ter ido para Roma, a congregação lhe ofereceu ajuda psicológica – que foi recusada. 

as tentativas de suicídio Já Pedro foi seguido na Psiquiatria durante mais de um ano. Para confirmar a denúncia de Roberto Carlos de Canelas, o MP pediu ao Hospital Vale do Sousa os registos médicos do jovem. E os documentos confirmam que, em 2003, Pedro fez pelo menos duas tentativas de suicídio. A 13 de Junho, deu entrada nas urgências por ter tomado remédios. Foi transferido para o Hospital de São João, no Porto, e ficou internado. Um mês depois, a 22 de Julho, voltou a dar entrada no hospital. Tinha ingerido 120 comprimidos e teve alta seis dias mais tarde, contra o parecer médico e depois de uma tentativa de fuga corajosa, através de uma das portas de emergência do edifício da Psiquiatria. 

a pj nas funerárias Além das inquirições, os inspectores da Judiciária passaram a pente fino os lugares onde Abel Maia trabalhou nos últimos anos: vários locais nas dioceses de Braga e de Bragança. Visitaram agências funerárias, falaram com escuteiros e vizinhos das casas paroquiais onde viveu. Até as empregadas da limpeza que contratou foram ouvidas. E todos os testemunhos recolhidos coincidiram: nos últimos anos, o padre Abel foi sempre visto sozinho, não levou pessoas para casa e não houve sequer rumores de que tenha tido comportamentos menos próprios – nem na altura em que viveu sozinho num apartamento, em Fafe.

as conclusões Ainda assim, nas conclusões da investigação enviadas ao Ministério Público, a PJ do Porto diz ter ficado convencida, apesar de Pedro ter negado tudo, de que houve toques de cariz sexuais entre Abel Maia e o jovem. Não se apurou, no entanto, que toques foram em concreto. Além disso, como ocorreram em 2003 e o rapaz já tinha mais de 16 anos, nunca poderiam configurar crime. 

Já os alegados contactos sexuais que o padre de Canelas diz que Abel Maia terá tido há mais de 20 anos com seminaristas de Coimbra, a terem acontecido também já teriam prescrito – por isso não foram sequer investigados. 
O inquérito acabaria por ser encerrado a 23 de Junho deste ano. O MP considerou que o crime de aborto denunciado na carta do padre Roberto ao bispo não tinha fundamento por a denúncia ser baseada em rumores. Na realidade, e quando foi à PJ, o pároco de Canelas acabou por admitir que o suposto pagamento de abortos era apenas um rumor que corria há mais de 15 anos na diocese do Porto, não conseguindo por isso especificar que padres estarão envolvidos. Da mesma maneira, também admitiu não saber que sacerdotes ao certo frequentam as saunas gays de Vigo – embora tenha garantido que essas viagens não envolvem menores de idade. 

Relativamente aos crimes de abuso sexual de crianças e coacção sexual, a procuradora do MP de Penafiel sublinhou que Pedro negou ter tido contactos sexuais com Abel Maia e que, por isso, não foi possível concluir se existiram mesmo e quando terão ocorrido. Também as tentativas de suicídio foram desvalorizadas, por não se ter conseguido provar causa directa ou indirecta com o suposto relacionamento de Pedro com o padre. E os testemunhos de Zeferino Ferreira e de Manuel Barbosa também de nada serviram: o jovem desmentiu-os ao negar qualquer envolvimento com Abel Maia. Além disso, em 2003 Pedro já tinha mais de 16 anos. E, mesmo que não tivesse, diz o despacho de arquivamento do MP de Penafiel, o crime já teria entretanto prescrito. 

Recentemente, Abel Maia avançou com um processo em tribunal contra o padre de Canelas por difamação, que está ainda a correr no Tribunal do Porto. Entretanto, o processo canónico instaurado ao padre de Fafe – suspenso de funções desde o ano passado – continua também a decorrer. Ontem, o i tentou chegar à fala com Abel Maia e o seu advogado, Nelson Domingues, sem sucesso: os dois telefones estavam desligados. 
* Nome fictício