Mulheres do  Mar. O destino traçado antes de nascer

Mulheres do Mar. O destino traçado antes de nascer


Há uns largos anos eram umas centenas que iam com os maridos pescar no estuário do Sado. Restam poucas, em Setúbal e Alcácer do Sal. Rosa, Adelina, Cláudia e Helena são das que resistem. São viciadas no mar, mas já não querem esta vida para os filhos, lá feitos e criados. É futuro incerto e viver todos os dias na incerteza cansa.


Calcular quantos filhos de pescadores foram feitos no mar é arriscado. Quem pode saber com algum rigor o que acontece entre o lançar e o colher das redes? Sozinhos numa lancha com seis metros e meio de cumprimento. Sem televisão ou vizinhos por perto. Cercados de mar e de silêncio. Horas e horas. Não venham cá dizer que é só conversa e trabalho duro, que isso é treta. Não convence nem os mais ingénuos. Diamantino, o filho mais velho de Rosa Ferreira, foi feito no mar. Isso é mais que certo. E certeza de mãe é infalível.

Rosa, filha de pescadores e ela própria pescadora de Setúbal, também foi feita no mar, há 41 anos, garantiram os pais dela. Talvez seja essa uma das muitas explicações para tantas mulheres andarem a pescar no estuário do Sado. Quem é feito no mar tem o destino traçado antes de nascer. Vale tanto para eles como para elas.

Há 15 ou 20 anos eram umas quantas centenas que iam com os maridos à pesca. Faziam filhos e filhas no mar e depois levavam-nos para os barcos porque não havia quem cuidasse das crianças em terra. Hoje, por aqueles lados, contam-se pelos dedos as mulheres pescadoras. Ou muito menos do que isso. 

No canal Norte, nas comunidades piscatórias do Faralhão, Gâmbia ou Águas de Moura, eram umas largas dezenas. Agora há quatro pescadores no activo no Faralhão e Adelina é a única mulher. No canal Sul, concentrados na Carrasqueira, em Alcácer do Sal, restam 50, e 23 são mulheres, contadas uma a uma por Cláudia Martins, que com 38 anos é a mais nova de todas.

Ainda hoje dormem no mar como antigamente. Usam as capacheiras (protecção usada nos toldos dos barcos e nas calças de pesca) para improvisar abrigos suportados por canas. Encolhem-se os dois lá dentro e deixam-se embalar. Elas fazem tudo o que os eles fazem. E ainda o que eles não fazem. Chegam do mar e tratam da comida, da horta, das galinhas, dos filhos.

O homem vai para o café passar o tempo com outros homens. Rosa também ia e continua a ir, que os tempos mudaram, mas ela não. Desde os primeiros meses de casada que gosta de se encostar ao balcão, puxar do cigarro e pedir uma bica. Há 20 anos era malvisto, mas Rosa queria lá saber do falatório. Deu–lhe muitas “chatices” com o marido, mas isso nunca foi argumento para ficar enfiada em casa.

As dinâmicas entre marido e mulher variam pouco; ainda assim, não são todas iguais. Cláudia e Vítor têm as mesmas tarefas quando estão no mar. Só em casa é que é diferente: “Eu faço tudo e ele fica no sofá à espera que lhe dêem de comer.” E no mar, bem vistas as coisas, o marido também não é o mesmo que em terra: “Anda sempre a guerrear.” Pragueja, arrelia-se, deita tudo cá para fora, mas não é com ela. É o mar, o barco, as redes, o peixe, os ventos, essas coisas. É um resmungar contínuo que ao fim de 22 anos já faz parte dos barulhinhos próprios da natureza. Ela já nem o ouve.

Em casa ou no mar, suportar maus fígados de marido e mulher é prova de fogo e não é para qualquer casal. Imagine-se então o que será viver e trabalhar juntos. Sem intervalos, pausas, férias ou fins-de-semana. E imagine-se, mais ainda, aturar a mesma criatura desde a adolescência. Helena Bacalhau casou-se aos 16 com Joaquim, que tinha 19. Cláudia tinha 16 e Vítor 19 quando foram viver juntos na Carrasqueira. Adelina e Rogério Vieira casaram-se aos 16 anos. Rosa divorciou-se do marido e, tal como em tantas outras coisas, quebrou as regras.

Antes de sair de casa, Cláudia vivia com os pais e mais três irmãos em Setúbal. Dizia que quando se casasse ia para bem longe, mas ficou por perto. Começou a andar no mar com a sogra e, afinal, a vida tornou-se mais desafogada comparada com a infância. Foi ficando no mar e até tirou a carta de arrais para poder conduzir um barco. Poderia até, se quisesse, ser mestre de uma embarcação, e deve ser caso inédito a ver pelo curso que tirou em 2008: uma mulher entre homens. No mar, porém, Vítor continua a ser o patrão e ela vai seguindo as ordens dele.

Na barca “Carla Silva” é o marido de Helena Bacalhau a tratar de quase tudo. Ela safa as redes. É tarefa que não exige tanto do corpo, mas dá muito trabalho. É preciso paciência e minúcia para tirar o lixo e o peixe agarrados às redes. Ela já não consegue içar o peixe para o convés. Se uma rede seca pesa à volta de oito quilos, molhada é o dobro; e carregadinha é três ou quatro vezes mais, garantem as pescadoras. Não se vai lá sem muito esforço e muita transpiração. A não ser que haja um aladouro, uma espécie de roldana mecânica que substitui a força dos braços. Mas as lanchas e as barcas são pequenas demais para aguentar o peso da máquina a trabalhar. 

Sem vagar para pieguices
Adelina e Rogério Vieira eram dois gaiatos recém-casados metidos no mar. Os pais dele é que sabiam da arte e ensinaram o filho. Ela não nada sabia do assunto. Só umas coisinhas por ter andado na apanha da minhoca para ganhar uns trocos. Rogério era de Setúbal, e Adelina de Alcácer. Ele ia para as zonas dela pescar e caçar e foi assim que se conheceram. E pronto. Está contada a história. Quem tem muito que fazer não tem vagar para pieguices. A não ser que se arranque a ferros o resto deste romance. Pois que seja. Compraram depois um barquinho que pagaram aos bochechos e foram vivendo com o que tinham. Agora é que acabou. Não há hipótese.

Com Helena Bacalhau, a sorte é outra. A vida do casal começou com a apanha da minhoca até amealharem 100 contos, que usaram para comprar uma barca. Ela não sabia nada da arte. A família vivia da terra e mal conseguia alimentar os 10 filhos. Helena achou então que teria mais futuro no mar. Olhando agora para trás, eram mais fáceis os tempos da infância. Matava-se um porco, matava-se uma galinha e oferecia-se à vizinhança um bocadinho. Devagar e aos poucos, ia dando para todos.

No mar acontecia o mesmo, mas já não acontece. Os pescadores andavam todos atracados uns aos outros. Cada um trazia o seu quinhão para a caldeirada. Comiam juntos, contavam anedotas e o tempo passava mais depressa. Agora um está aqui e outro acolá. Cada qual metido no seu barco.

Helena e Joaquim também. São só dois, mas conversa não falta: ou são os vizinhos garganeiros, ou são os filhos já criados ou então os preços das lotas, que não são iguais em todo o lado. Há assunto até não haver assunto. E depois há silêncio, com que nem um nem outro se importam. Se pudessem, mais tempo estavam no mar.

“Tenho uma cegueira por isto”, confessa a pescadora de 52 anos. Dantes ainda ia mariscar e apanhar minhocas nos baixios do estuário. De joelhos dobrados e braços enterrados na lama. Agora só vai à rede porque a saúde anda a fraquejar. “Amanhã não vais”, diz o marido. O aviso entra-lhe a 100 e sai a 1000. No dia seguinte, está no mar. Às vezes até se sente “saturada”, admite. O peixe não morde o isco nem cai na rede, e mais valia estar em casa. Só que depois está em casa e só pensa em voltar.

Quando ninguém mais vai ao mar, ela vai. Quando o vento se levanta forte e toda a gente fica em terra, ela está no mar. Nem sequer vai ao café, regalia que as pescadoras conquistaram com o progresso. “Vai espairecer, mulher”, insiste Joaquim. Qual o quê. “Eu gosto é de estar sozinha.” A solidão do mar acabou por se infiltrar no feitio dela.
São como as luas, os humores destas mulheres. De tanto andarem na faina, acabaram por apanhar os feitos das marés, sempre a mudar, a descer ou a subir. E as marés, já se sabe, são determinadas pelas luas. É por isso que as jornadas das pescadoras tanto começam às duas, como às três, como às quatro da madrugada. 

Caprichos da lua
Nas marés, vivas ou mortas, há que sair com três horas de antecedência para não serem apanhados pela enchente ou pela vazante. Todos os dias, a preia-mar e a baixa-mar demoram mais um bocadinho. Atrasam 45 minutos – caprichos da lua que nem vale a pena contrariar. Como tal, um dia não é igual ao outro. O mar tanto está quieto como num repente vem um daqueles ventos que põem homens e mulheres a fugir para terra firme. Por vezes, nem dez minutos duram. Ondas atrás de ondas e logo a seguir sossega, como se nada tivesse acontecido. 

Nem as novas tecnologias têm serventia para prever essas mudanças de humores. Não dá sequer para confiar na internet, por exemplo. É traiçoeira: diz uma coisa e na hora da verdade é outra. Leva--se uma porrada valente do mar. Se não for bem pior do que isso, como em tantos relatos dos pescadores.

Se houver alguma previsibilidade, talvez entre Abril e Maio, conta Helena. Abala às 7 da noite e regressa às 11 da manhã. Safa as redes, vende o peixe, faz o almoço e volta para o mar. No tempo que lá está, dá para lançar duas redes, a primeira às 4 da madrugada. Depois vai dormir debaixo da capacheira para se levantar às 8h30, colher as redes e voltar a lançá-las.

Tábua de mares
Noutros meses, não há horário fixo. Consulta-se a tábua de mares, vai-se na corrente e no que ela tem para oferecer. A apanha do polvo acontece entre Março e Junho e só quando a maré enche ou vaza. E também se não houver muita chuva, que este molusco não aparece no estuário se houver muita água doce. 

Potes de barros são colocados de três em três braços de rede, explica Rosa. Quanto mais velho é o pote, melhor. São precisos pelo menos 10 dias no fundo do mar para conseguir atrair a atenção do polvo. Finais de Junho, inícios de Julho, deixa-se o bicho em paz e tem início a época do peixe branco: douradas, sardinhas, salmonetes, linguados. O robalo, igualmente bem popular em Setúbal, pode ser pescado no Inverno inteiro. De Novembro a Fevereiro, as barcas e as lanchas estão em terra a maior parte dos dias. Encalha-se a embarcação e fazem-se os reparos: tratar e substituir as madeiras, pinturas, limpezas, arranjos nos motores, novas redes e remendos nas redes velhas.

Com as marés boas pode-se ganhar uns 150 euros num único dia. Nas más, se chegar a 50 euros é sorte, conta Adelina, em Setúbal. Ou bem pior do que isso, acrescenta Helena Bacalhau, na Carrasqueira. Ontem foi um bom exemplo de um mau dia: um quilo de linguados rendeu oito euros, e três quilos de chocos, três euros.

Invernos e infortúnios
É por isso que nos dias bons não se deitam foguetes. Em vez disso, guarda-se o que se pode. Novembro e Dezembro não se pesca. Nem um único dia. Vive-se do que se juntou nos outros meses. Toda a vida foi assim, contam as pescadoras. Poupar para sobreviver ao Inverno e aos infortúnios, sem época do ano para acontecerem. Adelina e Rogério, por exemplo, estão há 15 dias sem ir ao mar. Roubaram o motor da lancha. O nome de baptismo da embarcação de nada lhe valeu: “Andar à sorte”, neste caso, deu azar. O ladrão foi ao cais de Águas de Moura durante a noite e acabou com as hipóteses de o casal poder pescar, pelo menos enquanto não chegar um novo motor, que custa uns três mil euros, explica Rogério.

É por essas também que os pescadores (e as pescadoras, claro) se vão tornando, a passos largos, espécies raras. Viver com o imprevisto cansa. Boa parte das mulheres (e dos homens também) desistiu do mar. Arranjaram trabalho nas limpezas, nos supermercados, nas fábricas de conserva de Setúbal, ou ficam no desemprego.

Não é que a miudagem tivesse deixado de gostar desta vida. Diamantino, por vontade dele, ficava no mar, mas o futuro seria demasiado incerto e as mães não gostam de futuros incertos para os filhos. Se tudo correr como planeado, fica na Marinha, com salário fixo, sem se preocupar com o que virá a seguir. Aos fins-de-semana mata saudades do mar, ninguém lhe tira isso. 

A mãe dele é que não teve escolha. Rosa casou-se também com 16 anos, saiu do Faralhão e foi morar para a Carrasqueira. Viciou-se no mar e só largou a pesca com o divórcio. Voltou para Setúbal, tirou entretanto um daqueles cursos para cuidar dos velhinhos, trabalhou na restauração, vai vivendo de biscates e, quando julga que não vai aguentar, corre até Águas de Moura para mariscar na lama. 

Eduardo, filho de Adelina, tem 34 anos e desde rapazito gostava de andar no mar com os pais, a largar as redes. Mas agora anda metido no negócio das peças de carro. É mais seguro. Os filhos de Helena também gostam do mar, mas ela foi trabalhar para um supermercado das redondezas e ele para a Marinha, que é, como já se percebeu, a segunda opção para os rapazes que não sabem viver longe do mar.

Os ventos mudaram, mas não têm soprado a favor dos pescadores. Basta ver as lotas que foram fechando, no Faralhão, na Gâmbia e até na Carrasqueira, onde antes havia quatro compradores: o Armando, o Júlio, o Leonardo e ainda mais um cujo nome já caiu no esquecimento. Agora é um, às vezes dois – insuficiente para manter uma lota a funcionar. 

Vende-se directamente aos que sobram. Não há concorrência nem despique de preços, ou sequer relato de peixe, aquela ladainha acelerada dos vendedores a levantar um dedo e depois dois para indicar o preço do lote a crescer e a decrescer. Mas também, verdade seja dita, em mais lado nenhum isso acontece. Um comando com botões calou para sempre os vendedores das lotas.