Salman Rushdie não inventou os versículos satânicos. O título da obra que maior alvoroço causou na história recente refere-se a um episódio problemático nas próprias fontes do islão. Na origem da controvérsia está uma passagem do Alcorão (o versículo 53:21,22), que em parte terá sido corrigida depois de o profeta Maomé ser tentado por Satanás, proferindo palavras que admitiam a existência de outras entidades divinas além de Alá.
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O incidente deu-se num momento inicial do percurso do profeta, quando vivia em Meca e era escasso o número dos seus seguidores, o movimento enfrentava grande resistência e mesmo Maomé sofria o afastamento da sua tribo. Foi então que, de acordo com alguns dos seus primeiros biógrafos – autores como al-Tabar e Ibn Ishaq, cujos escritos são cruciais para a fé muçulmana –, o profeta pretendia apaziguar as relações conflituosas e reconciliar-se com a sua comunidade. Seria essa fragilidade que Satanás teria aproveitado para lhe pôr na boca as palavras que reconheciam a existência de outras divindades árabes, incluindo três figuras femininas mencionadas noutras passagens do Alcorão: al-Lat, al-Uzza e Manat. As três contavam já com um forte culto, existindo santuários que lhes eram dedicados, não muito longe de Meca, na Arábia, onde o profeta nasceu e iniciou a sua missão. Havia até quem as considerasse filhas de Deus. Segundo os relatos, após esta revelação as tensões diminuíram e muitos árabes pagãos deram por fim ouvidos a Maomé.
Mais tarde – e não há nenhuma indicação quanto ao tempo que levou até os versículos serem corrigidos –, Jibril (Gabriel), o anjo que fazia a ponte entre Alá e Maomé, repreendeu o profeta por se ter deixado ludibriar por Satanás, que se serviu do seu desejo de se reconciliar com os líderes pagãos para corromper as palavras de Deus. Há outras passagens no Alcorão que se entende que façam menção a esta cedência e reconciliação e à subsequente rejeição das divindades pagãs. Primeiro no versículo 17:73-75 e depois no 22:52-53.
Parece que nos estamos a centrar num pormenor, mas o que alguns analistas sugerem é que Rushdie se meteu em maus lençóis com a simples escolha do título do seu romance, aludindo a um incidente perturbador nas fontes do Islão. A partir do quarto século islâmico, uma série de estudiosos começaram a levantar objecções e a desacreditar este incidente. Os argumentos são muitos, mas o que está em causa é a própria fiabilidade do texto sagrado, uma vez que este episódio abre um perigoso precedente.
Um dos traços que acabaram por ganhar absoluto relevo nas disputas e nos conflitos à volta da fé islâmica é a sua veemente oposição à idolatria, ao politeísmo. É aliás curioso como na língua árabe esta fé arranca com uma frase na negativa: Não há outro deus senão Alá. Todas as religiões se debatem com questões de interpretação, mas é esta a que actualmente derrama mais sangue.
Há uma guerra no seio do Islão, e Rushdie é apenas um peão no meio dela. Excepto se a questão for vista de fora, da perspectiva ocidental, que o tem como uma torre a movimentar-se ao longo das linhas de um suposto choque cultural ou de civilizações entre este lado e aquele lado do mundo.
Mas é bom afastarmo-nos do debate de natureza teologal, uma vez que a ideia de que Rushdie fez tremer as fundações do islão é falsa. Mais provável é ter sido simplesmente uma oportunidade para a marcação do território dentro daquela fé. Como Andrew Anthony referiu há uns anos num artigo no “The Guardian”, o que surge em pano de fundo na controvérsia que engoliu a obra e a vida do escritor britânico de origem indiana é a luta de séculos travada entre a Arábia Saudita e o Irão para as respectivas elites religiosas se imporem como a autoridade máxima do islão em todo o mundo.
Boa parte do Ocidente segue as notícias que lhe chegam do Leste com perplexidade face à sangrenta rivalidade entre xiitas, sunitas e outras derivações ou bifurcações nos ramos da fé islâmica. Há muito que as elites religiosas saudita e iraniana se vêm digladiando para se imporem como o clero que fala em nome dos mais de 1,5 mil milhões de crentes em todo o mundo.
Os sauditas – que contam há décadas com um fabuloso beneplácito ocidental devido à sua aliança com os EUA – têm feito correr rios de dinheiro para apoiar os grupos sunitas, exportando a versão fundamentalista do islão que apregoam os lunáticos do Estado Islâmico como, já antes deles, os da Al-Qaeda. Por sua vez, e para não lhes ficarem atrás, os xiitas iranianos, ansiosos por fazerem esquecer a calamitosa guerra e o humilhante armistício com o Iraque, têm feito tudo para reafirmar o seu papel como a vanguarda da revolução islâmica. É aqui que entra a questão do programa nuclear. Muito mais que a razão, a bomba nuclear teve sempre um decisivo efeito persuasor.
A fatwa emitida pelo líder espiritual iraniano, o aiatola Ruhollah Khomeini, em 1989, em que encomenda a execução de Rushdie por ter blasfemado contra o profeta, quis ser e foi uma declaração de poder exemplar, ainda que o autor de “The Satanic Verses” permaneça vivo até hoje. É bom lembrar que na sua declaração original, transmitida pela rádio iraniana, o líder não condenou à morte apenas o autor mas todos os que estavam associados ao livro. E isto “para que ninguém se atreva a insultar a santidade da fé islâmica”.
Mesmo após a morte de Khomeini, o clero iraniano reafirmou que Rushdie permanecia um alvo. No ano seguinte, em 1991, Hitoshi Igarashi, o tradutor japonês de Rushdie, foi esfaqueado até à morte e Ettore Capriolo, o tradutor italiano, ficou gravemente ferido num ataque semelhante. Em 1993, William Nygaard, o editor norueguês, foi baleado e ferido, e mais tarde Aziz Nesin, o tradutor turco, foi alvo do massacre de Sivas, a localidade turca onde um incêndio num hotel causou a morte de 36 pessoas.
Além de ter levado a um corte das relações diplomáticas entre o Reino Unido e o Irão, a meses da sua publicação, em 1988, o livro foi banido na Índia, no Bangladesh, no Sudão, na África do Sul, no Sri Lanka, e no ano seguinte também no Quénia, na Tailândia, na Indonésia e em Singapura. O último país a proibi-lo foi a Venezuela, em Junho de 1989. Depois houve as cadeias livreiras britânicas, como a Collets e a Dillons, que por terem o livro nos escaparates foram alvo de ataques com cocktails molotov, além dos explosivos que detonaram e outros não em livrarias da Penguin, a editora do livro.
Enquanto livrarias por todo o mundo retiravam o livro de exposição, Rushdie foi obrigado a desaparecer. Passou a década seguinte em isolamento, cercado por guarda-costas e obrigado a mudar-se sempre que os serviços de segurança tomavam conhecimento de outra das inúmeras conspirações para o matar. Apesar de tudo, o livro não deixou de se tornar um bestseller em vários países, com as sucessivas edições a desafiar as ameaças. Depois de “The Satanic Verses”, Rushdie continuou a escrever, a publicar, e tem gozado de um tipo de êxito que dificilmente teria alcançado sem a verdadeira maldição de que foi alvo. Os sacrifícios e o desespero levaram-no a repudiar a obra e a suplicar perdão pelas palavras que escrevera. Recuperou alguma da sua liberdade depois de o governo iraniano ter retirado o apoio à fatwa em 1998, e com o tempo voltou a assumir o seu orgulho por ter escrito aquelas palavras.
Ao contrário de “Mein Kampf”, a obra com que iniciámos esta série sobre livros malditos, “The Satanic Verses” impõe-se firmemente no terreno da literatura. Quando já se queimavam exemplares e se pedia que o livro fosse retirado das livrarias, nas vésperas da fatwa, Rushdie deu uma entrevista em que parecia não ter ele mesmo consciência de uma frase que escreveu no livro: “O mundo, alguém o escreveu, é o sítio cuja realidade provamos ao morrer nele.” Esquecendo-se que a literatura é o outro sítio, aquele cuja realidade é provada pelos que nele alcançam a imortalidade, Rushdie comentou a fase inicial da polémica lembrando: “Se alguém não quer ler um livro, não tem de o ler. É muito difícil ficar ofendido por ‘The Satanic Verses’, pois requer um longo período de leitura intensa. É um quarto de milhão de palavras.”
Se, como já mostrámos, a mera alusão do título seria suficiente para causar alguma irritação, o facto é que Rushdie conseguiu uma proeza na literatura moderna ao reencenar a eterna batalha entre o bem e o mal, abrindo a realidade a golpes de fantasia, e elevando bem alto o sol da sua alegoria, num romance que, se ridiculariza alguns aspectos da “santidade” da fé islâmica, representa Maomé a uma luz mundana – à semelhança do que fez Saramago em “O Evangelho segundo Jesus Cristo”. A blasfémia está lá, mas tem como pano de fundo um maior respeito pela condição humana, maior que o respeito que mostram os líderes religiosos que em nome de uma qualquer verdade inviolável mandam matar homens.
Entretanto a cabeça de Rushdie continua a prémio. Já depois de o governo recuar, um grupo religioso subiu a recompensa de 2,5 para quase 3 milhões de euros. Terminamos com outra citação do livro.
“‘Pergunta: Qual é o oposto da fé?’
‘Não a descrença. Que sabe demasiado a fim, a certeza, a um fechamento. É ela em si mesma uma espécie de crença.’
‘A dúvida.’”