Gulbenkian. Uma viagem ao espaço, tempo para Paula Rego e desenhos a carvão


Autores como Júlio Verne ou H. G. Wells juntam-se ao precursor do cinema George Méliès no grupo de gente que infectou a imaginação de muitos miúdos, e de muita gente grande, ao longo de várias gerações. O português Edgar Martins inclui-se nesse grupo de fãs e confessa que o gosto pela ficção científica foi um…


Autores como Júlio Verne ou H. G. Wells juntam-se ao precursor do cinema George Méliès no grupo de gente que infectou a imaginação de muitos miúdos, e de muita gente grande, ao longo de várias gerações. O português Edgar Martins inclui-se nesse grupo de fãs e confessa que o gosto pela ficção científica foi um dos motivos para chegar onde chegou – falamos da nova exposição de fotografia que apresenta na Fundação Calouste Gulbenkian. Trata-se de um trabalho com a ESA, ou Agência Espacial Europeia, uma das mais importantes instituições do globo, que finalmente deixou um estranho entrar e retratar o seu interior. Durante um par de anos, Edgar andou em viagem, visitou cerca de 20 lugares, mais de nove países – entre eles estão paragens por Inglaterra, Holanda, Itália e Rússia. O balanço foi uma série fotográfica que se situa entre o abstracto e o documental e um filme que acompanha todo o processo.

Há imagens que nos dão muita informação, como os fatos e acessórios de astronautas e cosmonautas, outras que nos causam admiração e incómodo: temos dificuldade em perceber de que se trata, a sua dimensão. “A impossibilidade poética de conter o infinito” é isto e muito mais, um jogo de informação densa e também um malabarismo plástico, com diferentes interpretações. Com a ajuda do olhar de Edgar Martins, é possível entrar dentro de simuladores, observar capacetes, luvas e outros acessórios usados pelos homens no espaço, conhecer diferentes salas de testes, mais especificamente as câmaras acústicas. Os ensaios e a preparação para o espaço são o que aparece retratado, no caso do som, um passo fundamental: “O boom sónico e a própria vibração é capaz de matar uma pessoa”, continua. Nas salas grandes e coloridas há objectos e formas ambíguas e outros quase microscópicos. A perícia torna-se aliado essencial para fotografar alvos tão diferentes e com dimensões tão distintas. A maior parte das imagens teve de ser refotografada, explica o autor, ao apontar para um módulo que teve de visitar três vezes. Da última, a que resultou numa boa foto, demorou uma hora e foram precisos 200 flashes para o resultado pretendido.

Apesar de se tratar de um local de trabalho, são poucas as pessoas que encontramos nas imagens – essa humanidade é evocada através do rasto deixado pelos objectos. Há, aliás, uma série de imagens das coisas que os astronautas levam no foguetão – inclusive coisas a que lá em cima não têm acesso, como uma cassete de música ou uma lista das coisas loucas para fazer no espaço, como jogar frisbee com uma tortilha. Edgar esboça um sorriso. Erguer um projecto deste género significa ultrapassar barreiras burocráticas e culturais, mas é sobretudo uma questão de tempo: “Tenho de perceber a matéria, as pessoas que habitam esses espaços.”

PONTO DE ENCONTRO Há um corredor na sala de exposições do museu que, de agora em diante, não passará despercebido. Isto pelo simples facto de ter um Rembrandt e um Paula Rego em confronto. O Meeting Point é isso mesmo, local para encontro entre mestres de diferentes correntes e épocas. “Um espaço de reflexão e até de perturbação”, adianta a curadora Helena de Freitas. A ideia é que se torne hábito uma peça do Centro de Arte Moderna ser convidada da Gulbenkian para novos debates.

O contraste dá-se em cores e formas. Em “O Tempo, Passado e Presente”, de Paula Rego, encontramos uma série de referências aos quadros da National Gallery, local onde expôs esta pintura pela primeira vez. Já ao centro está o primeiro crítico de arte que escreve sobre ela. Ainda “a neta Lola, o marido, Victor Willing, numa pintura, a governanta Luzia ou a prima Manuela”, adianta a curadora. Por outra parte, “Figura de Velho”, do pintor e gravador holandês, contrasta na opacidade e nos tons escuros. Mas o que os afasta também os une: na provocação, na iconoclastia, já que são ambos artistas de intervenção. Da mesma maneira, é difícil não olhar para as suas pinturas e não matutar sobre o que está para lá dos contornos: ambos são exímios contadores de histórias. Em diálogo fala-se também da passagem do tempo: o sinal mais óbvio da ligação são as personagens centrais dos quadros, ambas de olhar perdido.

“Fazer um zoom e perceber o espaço de ressonância dos trabalhos” é o objectivo, conta Helena, que entrou em contacto com a própria Paula Rego, também interveniente no mais novo corredor da fundação.

em papel “Gulbenkian não era um coleccionador de desenhos”, anuncia-se, em jeito de introdução. Mas apreciava-os, por isso acumulou alguns ao longo da vida, o que no tempo do mecenas quer dizer uma vasta e valiosa colecção de desenhos e aguarelas (numa fotografia, à entrada da mostra, encontramos a sala de Gulbenkian com as paredes forradas de desenhos). E eis que, pela primeira vez em muito tempo, chegam a público. Mesmo depois das inundações dos anos 60 que afectaram tantos prédios em Lisboa, inclusive estas reservas, que sofreram danos, mas resistiram. “O Traço e a Cor” vem mostrar que o valor da arte é mais do que um esboço da pintura.

Arrancamos no século xvi com soldados e armas, pausa para a acalmia de “Pato-Bravo Morto”, de Albrecht Dürer. O francês Jean-Antoine Watteau inaugura a viragem para o século xvii com um retrato fechado de três senhoras.

A viagem é longa e com destino no século xx: no percurso as cores e os traços tornam-se mais ambiciosos, predomina a paisagem e o retrato, mas a ficção também é para aqui chamada. A faceta de Gulbenkian enquanto bibliófilo insaciável não passa despercebida nas incríveis ilustrações de livros. Aos desenhos terminados e a outros de preparação juntam-se os de arrependimento e ainda aqueles que são vocacionados para o tratamento de pormenor – de carvão ou pincel em riste, as possibilidades parecem não ter fim.

De segunda a sexta-feira das 9h00 às 13h00 e das 14h30 às 17h30. Para o Meeting Point compre o bilhete geral para o museu (5€). A exposição “O Traço e a Cor” está na sala de exposições temporárias (3€) e “A impossibilidade poética de conter o infinito” é gratuita.