Não o conheci no largo período do seu reinado sobre o jornalismo português. A imagem que tenho dele é já a desse homem vivendo como um nobre arruinado entre as ruínas de um projeto que, a certa altura, se ligou e deu alguma profundidade a um par de décadas de otimismo, em que o espírito se imaginou aberto ao porvir e ao contraditório, antes de recairmos de novo na condição de velho país langoroso e ineficaz.
José António Saraiva nunca se permitiu coincidir com a repelente caracterização que se tentou fazer dele, nem se confundia com os asnos solenes que se limitam a acompanhar as tendências. Teve a coragem de envergar a sua estranheza, de prosseguir o seu exercício de diário público através das crónicas, investindo numa leitura entre a política e os costumes, sem se render, nem nos oferecer a sua conversão simulada como mais um desses radiosos progressistas, permeáveis a tudo, que participam alegremente no atual regime das larvas que pregam, em que todos se esforçam por corrigir a vida de todos, e vemos os fóruns públicos assaltados por esse inferno dos salvadores.
Com as falhas que podem e devem ser-lhe apontadas, essas críticas a que ele nunca se furtou, deve reconhecer-se que teve pelo menos o arrojo de ferir o decoro político e social, de não se diluir na febre entusiástica destes que se desgarram numa obsessão de redenção que torna a vida irrespirável. No limite, farto do sublime e dessa convulsão constante e imensamente patética das hordas mais sensíveis, ele deixou-se estar como um ser da raça incorrigível que passeava alegremente entre os comícios dos nossos sindicatos da boa-consciência. E, nos últimos anos, parecia ter absorvido todo aquele excedente de insolência que foi sendo repudiado no espaço cada vez mais vigiado das “opiniões”, transformado num concurso de misses, sendo que, em vez desse comentador sempre muito hábil na gestão das suas reservas, com a sua imagem trémula, e que procura convencer-nos da justeza e da bondade das suas teses, ele fez o seu caminho do centro para a periferia, preferindo aquele grau irado dos que recusam submeter-se aos dogmas morais da época.
A partir de um certo momento, parece-me que ficou dominado por essa tremenda impostura que encheu as páginas dos jornais de um idealismo bacoco, preferindo exasperar-se e fornecer-nos a sua antítese. Nos últimos anos ele veio a ser uma espécie de alvo demasiado óbvio dos justiceiros da pena, tornando-se um foco dos incessantes debates sobre costumes, e acentuando o seu isolamento. Isso também lhe permitiu sinalizar todas as miragens e o lado aberrante de uma cultura em que as identidades já não correspondem ao desejo, mas a um insano baile de máscaras, em que a menor crise íntima se encena e é projetada como uma causa com infindáveis repercussões sociais.
Assim, José António Saraiva veio-se posicionando como um monstro de perplexidade, exprimindo uma forma de aversão que lhe saía com tintas de ultraconservador, exasperando mesmo os seus admiradores, que, apesar de tudo, não deixavam de lhe guardar estima e compreender essa atitude de proscrito e pária. Ao menos defendia-se dessa aspiração a auréolas intemporais investindo no desacato, denunciando a pusilanimidade diante das infinitas e frívolas recriações dessa gelatinosa fanfarra de egos. No seu conflito, inverteu a impostura desse progressismo acéfalo, e se os choques frontais que protagonizou muitas vezes produziram uma caricatura desfrontalizada da sua própria noção das coisas, não deixou de representar fielmente o fosso entre duas épocas, duas formas de intolerância, as duas bem municiadas de algum patetismo folclórico e puritanismo massacrante, sendo que a cultura woke, hoje, vem sendo tolerada e até promovida por um certo núcleo de intelectuais que vivem de traduzir as experiências de certos grupos marginalizados ou minoritários em meros tiques.
Ele foi o ser menos investido das qualidades de que tanto se ufanam os nossos cronistas, e parecia assumir um desdém quase compulsivo face ao catecismo azucrinante de que nos vemos cercados, o qual se faz acompanhar tantas vezes de um revisionismo delirante, e empurrando as discussões do plano da retórica para o da performance, para uma exibição permanente de si mesmo e dos seus valores íntimos, o que nos leva depressa a um esgotamento face a esse ambiente que só vibra no sentido da ilusão e da ignorância. Não me cabe certamente propor à circulação uma espécie de mito falsificado de José António Saraiva agora que ele já não se encontra entre nós, mas vi nele uma consciência negativa face a uma Idade que parecia ter embarcado numa tardia adolescência, com a sua farsa e o seu universo pleonástico, e na qual tendem a triunfar uns seres embriagados com as suas disposições afetivas e que parece que respiram apenas com o fito de exibir as suas coroas de cuspo.
De algum modo, creio que ele tinha intuído como a História entrou em putrefação, arrastando com ela o próprio jornalismo, esse instrumento que procura oferecer-lhe um primeiro esboço, e que se deixou contagiar por uma cadência demasiado precipitada, por urgências nocivas e pelo espalhafato e a miséria ociosa que tomou conta dos espíritos. Não é que ele tenha revelado uma consciência intemporal, mas vinha de um outro lugar, era filho de um dos maiores historiadores e críticos literários que surgiram nesta língua, e algo da sua ousada erudição lhe foi transmitido. Parece-me que teve a perceção de que a arrogância do nosso tempo leva a que todos os seus arroubos ou revoltas sejam tão mal concebidos quanto o mundo que as suscita. Corre-se em direção ao futuro, mas apenas por uma febre inerente à decomposição do presente. Parece-me que ele troçava dessas figuras que compareciam representando cenas caridosas, propondo uma visão da realidade que se mostrava tão frágil quanto enganadora e se traduzia, no final de contas, numa forma de hipocrisia consoladora.
Enquanto conservador, julgo que José António Saraiva estava do lado de figuras que emergem como anjos reacionários, lembrando-nos que a injustiça governa o universo e que «tudo quanto nele se constrói, tudo quanto nele se desfaz tem a marca de uma fragilidade imunda, como se a matéria fosse fruto de um escândalo no seio do nada» (Cioran). E que, por isso, a ordem é a verdadeira invenção deste ser cheio de pudor que é o homem, a sua barreira ou defesa contra o caos.
Numa entrevista que lhe fiz há precisamente um ano, ele assinalava como essa sensação de desordem latente foi algo que marcou sempre a sua relação com a época, e como nunca esperou que uma explosão incrível, a nível de consciência social, fosse capaz de abalar definitivamente o espaço ou sequer de enobrecer as almas. «Vivi a transição do salazarismo para o marcelismo, e depois para o quadro democrático no pós 25 de Abril, mas foi quando aderimos à União Europeia que me pareceu que, mais do que os fundos comunitários, isso era o que consolidava o regime democrático. Até então, o nosso país andou sempre aos baldões, entre golpes de Estado, ditaduras militares ou civis, com uma grande incapacidade de escapar a um modelo autoritário; mas finalmente, com essa integração e tutela europeia, tínhamos a garantia de que as instituições democráticas estavam asseguradas. Tendo vivido parte da minha vida em ditadura, essa garantia democrática foi para mim um alívio. O problema agora é que são as próprias instituições europeias que parecem estar a ficar comprometidas, e desafios novos, como a invasão da Ucrânia, deixam-nos um pouco ansiosos quanto à capacidade de a Europa se unir para dar resposta a esse tipo de ameaças. A emergência de movimentos fascistas ou iliberais, e o desaparecimento ou erosão de certos partidos históricos, desde logo os partidos socialistas, tudo isso abre caminho a convulsões profundas que podem pôr em causa o projeto europeu».
De algum modo, ele antevia os perigos que neste momento são já bastante claros, tinha um pressentimento de que a paz que se viveu nas últimas décadas foi uma espécie de intervalo onde nos foi dado repousarmos de nós próprios. Entretanto, com a superação das utopias, só restavam certos delírios narcísicos que se têm vindo a formular enquanto regimes identitários, e creio que ele entendia a degradação do discurso público em resultado desse dinamismo das individualidades que se entregam a uma histeria heroica, e que vai ao ponto de querer forçar o passado, agir retroativamente, protestar contra o irreversível. Como se a consciência da injustiça da História humana fosse algo de inaceitável, e ela mesma devesse estar sujeita a reforma e a uma pedagógica recriminação, também para ganhar balanço e invocar uma ordem paradisíaca com base nos artifícios desse charlatanismo demagógico que aprendeu a fazer-nos sonhar com mundos ilusórios.
Parece-me que José António Saraiva se insurgiu com as armas que tinha contra essa obsessão pelo alhures que revela uma impossibilidade de lidar com o mundo por aquilo que este é, e, sendo incapaz de o transformar, se limita a produzir reservas, zonas de exclusão, parques temáticos onde a vida se dissolve inteiramente numa delicadeza pressurosa, e onde este untuoso iluminismo pretende construir o paraíso enquanto ficção puritana. Como é evidente, já não se aguenta essa espécie de guizo, e Saraiva desaparece num momento em que as suas apreensões e imprecações podem bem vir a perseguir-nos por um largo período, isto depois de tantos terem sentido a necessidade de o expor ao ridículo, como se fosse ofensivo um homem revelar o seu sentimento de estranheza face a uma nova composição de valores sociais.
Eu nem soube que ele estava doente. Não éramos próximos. E, na verdade, entre nós nunca houve grande coisa a discutir, talvez porque era já demasiado tarde, e só nos restava trocar impressões a partir da distância que nos separava, sendo certo que não podíamos renunciar ao que quer que seja. E se ele me deu alguns sinais de estima, eu procurei retribuir da única forma que considero séria, que é deixar que sejam as circunstâncias a ditar qualquer troca ou encontro. No entanto, a certa altura vim a dar-me conta de que foi realmente uma lástima não ter podido trabalhar enquanto jornalista tendo-o a ele como interlocutor, nos anos em que dirigia este jornal. Não sei o que teria sido diferente, mas creio que era esse o seu talento tão particular, o de nos dar essa hipótese de imaginar o que faríamos de diferente se essa possibilidade realmente estivesse em cima da mesa.