Desde a Primavera Árabe, no início da década passada, que vários países do Norte de África e do Médio Oriente mergulharam na instabilidade. Guerras civis, banhos de sangue e grandes fluxos de refugiados foi o resultado. Um dos países mais abalados por este tumultuoso período foi a Síria. Um país altamente fragmentado, quase que como uma manta de retalhos étnico-religiosa, que esteve sob o controlo tirânico da família Assad por mais de cinco décadas, dá outra vez provas de que a estabilidade não está para breve.
Otimismo muito exagerado
Após o derrube do regime, que caiu como um castelo de cartas em meados de dezembro de 2024, surgiu uma figura, o ex-Al Qaeda Abu Mohammed al-Jolani, que deu esperanças a alguns membros da sociedade ocidental. O exemplo máximo foi a visita do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, à Síria, encontro do qual resultou uma fotografia que parecia marcar um virar de página rumo à estabilidade num território tão importante ao nível geoestratégico.
À data da tomada do poder pelos rebeldes, Kim Ghattas, uma das mais conceituadas correspondentes no Médio Oriente, disse no Global Public Square (GPS), do qual Fareed Zakaria é o anfitrião, que a situação não era igual à do «Iraque, onde houve uma invasão dos EUA que derrubou Saddam Hussein», nem à da Líbia «onde houve uma intervenção liderada pela ONU. Este é um processo liderado pelos sírios, e é por isto que penso que devemos ser um pouco mais otimistas e apoiar os esforços sírios. Para nos certificarmos que vão em frente rumo à estabilidade».
Regresso dos massacres
Volvidos apenas três meses da queda de Bashar al-Assad, as imagens que nos chegam da Síria contrariam as previsões otimistas de Ghattas. Milhares de pessoas foram mortas e massacradas nos últimos dias, principalmente os cidadãos pertencentes à minoria alauíta – à qual Assad pertencia – e alguns cristãos. Segundo o Washington Institute for Near East Policy, «a 6 de março, antigos rebeldes do regime emboscaram as forças de segurança do governo de transição na cidade costeira ocidental de Jableh, matando 30 pessoas (muitas das quais foram encontradas mais tarde queimadas ou em valas comuns pouco profundas)». «Em resposta», continua o artigo, «as forças governamentais e elementos afiliados mataram 396 civis e desarmaram militantes, de acordo com os números divulgados hoje pela Rede Síria para os Direitos Humanos. A SNHR também informou que os remanescentes de Assad mataram 383 pessoas durante esta ronda de combates – 172 soldados e 211 civis. No total, foram mortas 779 pessoas, tendo o número total de mortos mais do que duplicado desde 8 de março. A SNHR acredita que este número irá aumentar ainda mais à medida que forem sendo descobertas novas provas nos próximos dias». O novo líder sírio utilizou a prevenção do «caos ou [da] guerra civil» como justificação para acontecimentos, noticiou o The Times.
Ainda segundo o jornal inglês, a SNHR disse que estão em curso «assassínios, execuções no terreno e operações de limpeza étnica».
Fugir para o Líbano
Os relatos que chegam do território sírio são naturalmente preocupantes. Para além do que já foi descrito pela SNRH, que avançou já a morte de mais de 1200 civis, a Reuters reportou que a violência se começou a alastrar «pela região costeira, onde vivem muitos alauítas, na quinta-feira, quando o governo islâmico sunita da Síria disse que as suas forças tinham sido atacadas por remanescentes do regime de (…) Bashar al-Assad, um alauita. As forças de segurança invadiram a região para esmagar a insurreição, enquanto as mesquitas das zonas leais ao governo lançavam apelos à jihad (guerra santa)».
Por isto, centenas de famílias fugiram para o Líbano, país que faz fronteira com a Síria. Os relatos de repórteres da Reuters indicam que foram vistas «mais de 5 pessoas a atravessar as águas do rio Nahr El Kabir até à altura dos joelhos para o Líbano durante um período de meia hora na terça-feira, transportando crianças e todos os bens que conseguiam reunir». «Mais de 350 famílias fizeram a mesma viagem para o Líbano nos últimos dias, de acordo com as autoridades libanesas locais», continua a notícia da mesma agência, «fugindo da violência em que, segundo o gabinete dos direitos humanos da ONU, famílias inteiras, incluindo mulheres e crianças, foram mortas».
Análises certeiras
Por isto, importa recordar as palavras de Fareed Zakaria e de Richard Haass no mesmo programa onde Kim Ghattas esboçou o seu ‘wishful thinking’.
O primeiro disse o seguinte sobre o possível futuro do regime sírio: «Um regime balcanizado, ataques a minorias, talvez um ressurgimento do Estado Islâmico. Como disse o Secretário de Estado Antony Blinken, ‘depois de o termos colocado [Estado Islâmico] na sua caixa, não o podemos deixar sair’».
O segundo, por sua vez, mostrou-se alinhado: «O que me vem à mente são os Balcãs. Temos tendência para pensar nos países com entidades singulares, e é esse é uma possibilidade para a Síria (…). Também temos de ter cuidado com a existência de entidades singulares malignas, podemos ter um futuro semelhante ao dos Talibã para a Síria. Mas penas que o mais provável, num futuro previsível, (…) é uma manta de retalhos (…) com os curdos aqui, grupos apoiados pela Turquia em algumas partes do país, os israelitas avançaram de forma preventiva e limitada ao longo da sua fronteira, (…) o HTS terá as suas áreas». Haass acrescentou ainda que «por muito difícil que seja derrubar um regime, é ainda mais difícil construir um país funcional». Estas citações foram publicadas, em dezembro, num texto no Nascer do SOL intitulado “Síria: a calma antes da tempestade”, e parece que o tempo veio dar razão aos dois analistas acima mencionados.