Na manhã seguinte ao chumbo da moção de confiança, os corredores do Palácio de São Bento estavam vazios. Com a dissolução do Parlamento, entretanto decidida pelo Presidente da República,a atividade parlamentar vai ficar, na sua maioria, suspensa. A Assembleia da República cessa o seu normal funcionamento, designadamente das reuniões plenárias, mas o mandato dos deputados subsiste até à primeira reunião da nova AR, na sequência das eleições legislativas, que deverão acontecer em maio.
Neste intervalo entra em funções a Comissão Permanente da Assembleia da República, um órgão com menos deputados do que o plenário e poderes limitados. Esta comissão é presidida pelo presidente da Assembleia da República, Aguiar-Branco, e composta pelos vice-presidentes e por deputados indicados por todos os partidos com assento parlamentar, de acordo com a respetiva representatividade.
No período de dissolução, a Comissão Permanente reúne-se, normalmente, de 15 em 15 dias, precedida de reunião da Conferência de Líderes, que junta o presidente da AR e os presidentes dos diversos grupos parlamentares.
O ex-deputado do PSD Duarte Pacheco explica que «a Comissão Permanente pode votar três coisas: votos de pesar; assuntos judiciais, como levantamentos de imunidade ou deslocamentos a tribunais; e os pedidos de deslocação do Presidente da República ao estrangeiro, que pode acontecer de forma não programada, por exemplo, no caso de acontecer algo ao Papa».
CASO DAS GÉMEAS: MARCELO SAI A GANHAR?
Se para alguns a dissolução do Parlamento é uma dor de cabeça, para outros pode vir mesmo a calhar. É o caso da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso das gémeas luso-brasileiras, que, sem ida a plenário para discussão e votação, poderia acabar sem consequências. Marcelo apontou o dia 19 de março para a dissolução do Parlamento, o que poderá ainda dar tempo para a conclusão dos trabalhos.
«Se o Presidente assinasse o decreto de dissolução esta sexta-feira, o trabalho da CPI ficava todo em águas de bacalhau. Se só assinar no final da próxima semana, isso ainda pode permitir à Comissão reunir, discutir o relatório e fazer o debate do relatório em plenário», aponta o ex-deputado do PSD.
Em causa no inquérito estariam suspeitas de influência do Presidente na República para que duas crianças gémeas luso-brasileiras recebessem um tratamento de 4 milhões de euros (medicamento Zolgensma) para a atrofia muscular espinhal.
Os pais das duas meninas são amigos do filho do Presidente, Nuno Rebelo de Sousa, e, além do tratamento, as crianças receberam a nacionalidade portuguesa em 14 dias. Até agora foram constituídos arguidos os pais das gémeas, Nuno Rebelo de Sousa e o ex-secretário de Estado da Saúde Lacerda Sales.
O chefe de Estado foi acusado de eventual «abuso de poder» na proposta de relatório do inquérito parlamentar, redigida por Cristina Rodrigues, do Chega.
Ao longo de 254 páginas, a relatora do Chega conclui que «ficou provado que Nuno Rebelo de Sousa pediu ajuda ao pai, o Presidente da República, para salvar as gémeas luso-brasileiras» e que este «tomou diligências acrescidas face ao que costuma fazer com outros cidadãos que a ele recorrem».
O PSD e o CDS anunciaram esta quinta-feira que vão votar contra o relatório do Chega, por considerarem que não houve qualquer «intervenção indevida pelo Presidente da República» em todo este processo. Para ambos os partidos, houve sim uma «intervenção exagerada» de Nuno Rebelo de Sousa, que se concretizou através da ‘participação’ de Lacerda Sales.
O deputado social-democrata, António Rodrigues, argumenta que Marcelo «se limitou a reencaminhar um e-mail que recebeu do filho».
No mesmo sentido, a líder bloquista também lançou várias críticas às conclusões do relatório. «Não podemos auferir que o Presidente da República tenha tomado diligências acrescidas», afirma Mariana Mortágua. «Até pode ter acontecido, mas não temos provas disso. Só sabemos que reencaminhou o e-mail aos assessores».
LÍDER DO PAN PEDIU AO PR PARA ADIAR DISSOLUÇÃO
Ao Nascer do SOL, Inês Sousa Real avança que já tinha «alertado o Presidente da República para a importância de salvaguardar alguns processos legislativos em curso» para que «não fiquem perdidos no meio do caos de instabilidade política».
Sobre se a escolha do dia 19 de março para a dissolução do Parlamento dá tempo suficiente para o debate e votação do relatório em plenário, a deputada única do PAN diz que «em princípio, sim», dado o estado avançado do processo.
Já sobre a possibilidade de Marcelo sair beneficiado, caso a Comissão de Inquérito não avance, Inês Sousa Real discorda: «Tendo em conta as conclusões do relatório, não me parece que seja beneficiado. De qualquer das formas, é importante que este processo seja fechado, a bem da credibilidade da Comissão Parlamentar, da Assembleia da República e da instituição que é a Presidência da República».
E acrescenta: «Foi um processo muito acompanhado por todos os portugueses e um trabalho que levou muitos dias, muitas horas, muitas audições. É importante que os portugueses vejam fechar este capítulo da Comissão Parlamentar de Inquérito».
Segundo a deputada do PAN, haveria ainda a possibilidade em cima da mesa de ser a Comissão Permanente votar o relatório.
Se nenhuma destas duas hipóteses fosse para a frente, só a criação e uma nova CPI, após a tomada de posse do novo Governo, permitiria a continuação do escrutínio do caso. Nesse caso, nem tudo ficaria perdido. «A nova CPI costuma pedir todos os elementos das comissões anteriores e começa a partir do momento onde a outra acabou» e que «no limite, poderia durar mais uns 15 dias», explica o ex-deputado do PSD.
Já uma Comissão de Inquérito que terminou antes mesmo de começar foi a apresentada pelo PS para avaliar o cumprimento das regras por parte do primeiro-ministro na sequência do caso da empresa familiar. Com a dissolução do Parlamento, o escrutínio às contas de Montenegro terá de passar para a próxima legislatura.
Esta não é a primeira vez que uma Comissão de Inquérito fica pelo caminho com a queda de um Governo e dissolução do Parlamento. Duarte Pacheco recorda o caso da Comissão Parlamentar de Inquérito à tragédia de Camarate, que investigou o acidente de aviação em que morreram Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa e acompanhantes, em 4 de dezembro de 1980 , e que teve dez comissões parlamentares de inquérito ao longo de 30 anos.