“Portugal é hoje, sem qualquer dúvida, um país muito diferente do que foi no passado e, nesse percurso, as mulheres foram aliadas especiais. Embora tivessem mantido grande parte dos ancestrais deveres para com a casa e os filhos, destacaram-se por terem revolucionado o seu papel social na esfera pública. Apostaram na escola, qualificaram-se e integraram-se, de forma efetiva, no mercado de trabalho. Hoje, as mulheres são mais escolarizadas do que os homens, estão bastante mais representadas na população ativa e já são, aliás, maioritárias em muitas profissões tradicionalmente mais exercidas por homens”, refere ao i, a demógrafa Maria João Valente Rosa. Ainda assim, admite que “persistem desigualdades sociais incompreensíveis entre homens e mulheres, em desfavor delas”, dando como exemplo a questão salarial, chamando a atenção para o facto de as mulheres com idênticas qualificações receberem menos e que essa diferença, por comparação ao que recebem os homens, aumenta consoante o nível de qualificação em causa.
A demógrafa diz ainda que as áreas da Ciência e do Ensino Superior poderiam ser a exceção na desvantagem de se ser mulher, uma vez que os atributos destacados para estas funções são o talento e o conhecimento, mas isso não se verifica na realidade. “Por exemplo, no caso das instituições de ensino superior universitário, a proporção de doutorados mulheres é muito superior às proporções de mulheres professoras catedráticas ou professoras associadas. Assim, também nas esferas superiores das hierarquias social e cultural, não é totalmente indiferente ser-se homem ou mulher para aceder a cargos ou posições de topo e de liderança, mais bem remunerados e reconhecidos socialmente”.
Valente Rosa não hesita: “Todos sabemos e sentimos que homens e mulheres não são iguais. A desigualdade entre pessoas é natural, humana. O que dizer da desigualdade social? Essa desigualdade se decidida de forma apriorística, não tendo em devida consideração o valor diferencial de cada ser humano, e se dificulta, com base no rótulo sexo, a efetiva concretização dos projetos de alguém, não pode ser socialmente justa. Não faltam indicadores que confirmam essa desigualdade injusta. Entre eles, acrescento a frase atribuída a Françoise Giroud ‘Só existirá verdadeira igualdade entre homens e mulheres quando houver mulheres incompetentes em cargos de liderança’”.
O que falta fazer
Também o geógrafo Jorge Malheiros reconhece que foram “ocorrendo alterações grandes e importantes no Portugal democrático, mas que foram acontecendo progressivamente”. Ainda assim, admite que continua a haver muito trabalho por fazer. E um deles, de acordo com o responsável, passa por uma mudança de mentalidade. “Há elementos estruturais que são muito difíceis de mudar. Além de que, falando do outro lado, não é fácil para quem tem privilégios perdê-los de um momento para o outro. Há um processo lento de mudança de mentalidades e mentalidades de todos: dos homens, das mulheres”, refere ao nosso jornal, apesar de reconhecer que todos ganham “se homens e mulheres tiverem as mesmas oportunidades, se os direitos dos homens e mulheres, não só na lei, mas na prática forem os mesmos em relação ao mercado de trabalho, em relação à conciliação entre a vida no trabalho e a vida familiar”.
No entanto, reconhece que essa perda de privilégios por parte do sexo masculino nem sempre é fácil. “Como é óbvio, quem tem privilégios, em princípio, não está disponível para abdicar deles, ou mesmo estando, não há uma chamada de atenção, não há uma necessidade”, acrescentando que “os privilégios podem ser vistos como um recuo”, reconhecendo que há atualmente movimentos mais conservadores que procuram ganhar uma expressão assentes “em lógicas mais apoiantes dos valores tradicionais, apoiantes de um certo nacionalismo que têm, muitas vezes, um lado mais machista, masculino e que acaba por fazer eco na sociedade”.
Uma situação que, de acordo com Jorge Malheiros, pode levar a que se procure atribuir às mulheres um papel mais assente no espaço doméstico, “tentando voltar a valorizar mais o papel dos homens no espaço público, no exterior, etc. mais conforme o funcionamento da sociedade”.
Passos insuficientes
É certo que o geógrafo reconhece que a educação que foi dada às gerações mais novas permitiu progredir no sentido de dar maior igualdade e maior respeito pelo modo como cada um dos sexos tem de decidir a sua vida e de controlar as suas ações nos diferentes campos da vida social. “Entre os mais jovens há um progresso importante, mas mesmo havendo esse progresso ainda assistimos a erupções de algum conservadorismo, de algum tradicionalismo e, por outro lado, como o progresso ainda não é total temos a prevalência de alguns aspetos muito negativos, como é o caso, por exemplo, da violência doméstica que é o crime mais frequente na sociedade portuguesa e que é sobretudo de homens em relação a mulheres”, salienta.
Por outro lado, defende que continua a existir uma manutenção de algumas desigualdades, não só no mercado de trabalho, mas também no espaço doméstico. “No outro dia olhava à minha volta no café e estavam várias crianças muito pequenas, algumas ainda nos carrinhos de bebé, outras com dois, três anos e estavam quase sempre acompanhadas pelas mães. Portanto, o papel da mãe em casa e no espaço doméstico aparece com um papel central”, diz ao i. E, nesse sentido, afirma que, mesmo que haja um esforço forte na educação da igualdade, o papel social de acompanhamento continua a recair mais na mulher. “O processo de mudança é lento. A alteração destas questões leva bastante tempo e as mulheres continuam a ter uma exigência maior em termos dos tempos de trabalho, não só do emprego remunerado como do trabalho em casa”, refere.
Raio-x
Há 5,5 milhões de mulheres em Portugal, o que representa 52% da população. Feitas as contas, por cada 100 mulheres existem 92 homens, colocando o país em 4.º lugar dos 27 da União Europeia com menor número de homens por cada 100 mulheres, revelam os dados da Pordata. Já Odemira é o município do país com maior rácio de homens por mulheres (132 homens para cada 100 mulheres), enquanto em Porto Moniz na Madeira, as mulheres estão em larga maioria: 79 homens por cada 100 mulheres. Por outro e, segundo os mesmos dados, residem em Portugal quase meio milhão de mulheres de nacionalidade estrangeira. Na população residente estrangeira existem 113 homens por cada 100 mulheres, uma situação distinta daquela que se observa na população residente total.
Apesar de estarem em maioria no país, o cenário é diferente consoante os grupos etários: “Nos mais novos, dos 0 aos 4 anos, há mais homens do que mulheres, mas a proporção de mulheres aumenta gradualmente até aos 70-74 anos (54,4% de mulheres), sendo bastante superior no escalão etário mais elevado: a partir dos 100 anos, há 4 vezes mais mulheres do que homens. Na União Europeia, França é o país campeão no que toca à proporção de centenárias na população feminina: são 76 em cada 100 mil mulheres enquanto no país seguinte, a Itália, o rácio é de 56 em 100 mil e, em Portugal, que se encontra em 5.º lugar, é 43 centenárias em cada 100 mil mulheres”, diz o estudo.
E as alterações não ficam por aqui. As mulheres têm vindo a optar por serem mães pela primeira vez numa idade mais tardia, com mais de 30 anos. “Portugal é o 6.º país da UE27 onde as mulheres têm o 1. º filho mais tarde, tendo o país subindo 4 posições no ranking em duas décadas (em 2003, estava 10.º lugar)”, salienta o documento.
Menor taxa de abandono escolar vs maior riscos de pobreza
As mulheres apresentam menores taxas de abandono escolar em comparação com os homens e contam com uma maior presença no ensino superior. “Entre os 25 e os 64 anos, 34% das mulheres concluíram a licenciatura, em contraste com 25% dos homens. Essa diferença torna-se ainda mais evidente na faixa etária dos 25 aos 34 anos, onde 48% das mulheres possuem um diploma universitário, em comparação com 35% dos homens”, refere o documento.
Por outro lado, Portugal é dos países da União Europeia com menor percentagem de jovens mulheres ‘nem-nem’ – indicador que se refere aos jovens entre os 15 e os 29 anos que não estudam nem trabalham – fixando-se em 8,9% no nosso país, um valor inferior face aos 12,4% registado da média na UE27 e colocando-nos em 5. º lugar dos países com menor proporção.
Mas apesar dos níveis de escolaridade terem vindo a subir junto do segmento feminino também é verdade que estão mais expostas ao risco de pobreza, com uma taxa 2,2 pontos percentuais superior à dos homens. No entanto, essa desigualdade é mais acentuada na faixa etária dos 65 anos ou mais, onde a diferença ultrapassa os 5 pontos percentuais – 18,1% para os homens e 23,4% para as mulheres. “Na prática, isso significa que quase uma em cada quatro mulheres com 65 anos ou mais se encontra em risco de pobreza”, diz a Pordata, acrescentando que “esse facto também é reflexo das pensões de velhice e invalidez, que, tal como acontece nos salários analisados acima, padecem de desigualdades penalizadoras das mulheres: nas pensões de invalidez há uma diferença de 67,8 euros e nas de velhice a diferença entre homens e mulheres é superior a 300 euros”.
Segundo os dados do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho e Solidariedade Social, os homens por pensão de invalidez recebem em média cerca de 560 euros por mês, enquanto as mulheres auferem pouco mais de 492 euros mensais. Já a pensão por velhice, o sexo masculino recebe uma média de 833 euros por mês, bem acima do que o sexo feminino ganha e que ronda os 516 euros mensais.
E os riscos não ficam por aqui. De acordo com o mesmo estudo, “a vulnerabilidade feminina é evidente nas famílias monoparentais, já que cerca de nove em cada dez agregados monoparentais são formados por uma mulher que vive sozinha com filhos”, referindo que “estas famílias enfrentam uma das taxas de risco de pobreza mais elevadas: 31% das pessoas que integram esta tipologia de famílias vivem com um rendimento mensal abaixo do limiar de pobreza – 632 euros para o adulto, mais 189,6 euros por cada criança – quando a taxa global é 16,6%”.
Mais tempo de vida
Já em termos de saúde, as mulheres tendem a viver mais do que os homens. O relatório da Pordata indica que, em 2023, uma mulher de 65 anos ainda tinha, em média, 21,1 anos de vida pela frente – três anos a mais do que um homem da mesma idade. Mas explica a tendência: “Tal decorre das mais baixas taxas de mortalidade: por cada 100 mulheres com idades entre os 70 e os 74 anos apenas se registou 1 óbito em 2023. A incidência desta fatalidade passa para 2 em 100, 4 em 100 e 9 em 100, respetivamente nos grupos etários 75-79, 80-84 e 85-89 anos. Nos homens, a incidência é 2 em 100 nos grupos etários 65-69 anos e 70-74 anos, e 3 em 100, 6 em 100 e 12 em 100, respetivamente nos grupos etários 75-79, 80-84 e 85-89 anos”.
No entanto, o estudo alerta que, isso não significa que vivam com mais saúde. “Após os 65 anos, em média, as mulheres podem esperar viver 7,3 anos sem problemas de saúde, enquanto os homens desfrutam ainda de 8,6 anos de vida saudável”, conclui.
Ainda na área da saúde, o relatório destaca que é o sexo feminino quem participa nos cuidados, já que são as mulheres a grande maioria dos cuidadores informais, totalizando 13 800 e correspondendo a 84% do total, enquanto os homens são apenas 16%.
Acelerar a igualdade
Apesar de a União Europeia reconhecer que têm sido realizados progressos nas últimas décadas considera que “a violência e os estereótipos baseados no género continuam a existir”, referindo que “as mulheres continuam a ser vítimas de violência física e/ou sexual, a ganhar cerca de 16% menos que os homens e representam uma baixa percentagem (8%) dos cargos de presidente executivo de grandes empresas”.
E, neste contexto, a Comissão Europeia lançou a Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025. A Estratégia assenta numa “Europa em que mulheres e homens, raparigas e rapazes, em toda a sua diversidade, sejam iguais e livres de seguir o caminho de vida que escolheram, tenham as mesmas oportunidades de realizarem o seu potencial e possam participar na nossa sociedade europeia e dirigi-la, em igualdade de circunstâncias”.
Este ano, o lema assenta em: “Para todas as mulheres e meninas: direitos, igualdade, empoderamento” e a campanha pretende “dar continuidade a ações que promovam a igualdade de direitos, poder e oportunidades para todos, em que ninguém seja deixado para trás. No centro desta visão está a capacitação da próxima geração – os jovens, em particular as jovens mulheres e as meninas adolescentes – como catalisadores de uma mudança duradoura”.