Aqui há gata


Mas o espectáculo é na comunicação social que se desenrola, com cada vez menos regras de decência e de equilíbrio mínimos, a um ritmo desenfreado que nos ultrapassa a todos e leva tudo de roldão.


1.

 Sobretudo quando os casos aquecem, é fundamental que os escrutinadores mantenham a serenidade. Se não for assim, é difícil entender exactamente o que se passa. E a comunicação deve manter distância, imparcialidade e isenção, ajudando à objectividade dos juízos e ao conhecimento da verdade. Infelizmente não é assim. Anda tudo em campanha, enquanto a democracia se afunda.

No enredo em que se cerca o primeiro-ministro, há um caso singular que mostra a doença em que estamos. Tropecei nele por acaso. Escrevi no Facebook sobre o que atraiu a minha atenção. Mas o estendal é mais vasto.

2. 

 A notícia em que tropecei foi no “Correio da Manhã” com este título: “Família Violas é dona de quinta que pode beneficiar com novo traçado do TGV”. A notícia visava servir este guião mental: a quinta, não sendo do líder da Solverde, era de um parente e, portanto, da “família”, tudo a mesma coisa; Montenegro foi advogado da Solverde, de que negociou com o governo António Costa a extensão da licença; Montenegro e Solverde estão no centro da polémica, por causa da Spinumviva; a Solverde pagou à Spninumviva uma avença mensal, para remunerar favores diversos, desde a concessão do jogo nos casinos ao traçado do TGV. A notícia está escrita de forma que parece sugerir que o “benefício” para o dono da Quinta da Gata, cujo nome é sempre omitido, seria o TGV passar a atravessá-la. O “benefício” possível poderia ser, assim, o proprietário passar a dispor de TGV à porta ou de ir obter lucros chorudos com a expropriação de terrenos da Quinta – em ambas as hipóteses, disparates completos.

Esta notícia foi, afinal, uma de várias, quase todas lastimáveis. Tudo começou por uma notícia no “Público”, às 15h28 de 7 de Março: “Expropriações para a alta velocidade em Espinho assumem traçado diferente. Alteração ao traçado da linha de alta velocidade surpreende autarcas e moradores de Espinho. Novo desenho é diferente do que foi apresentado pela IP.” O enredo sugerido não era muito diferente do CM, embora com extensa menção das fontes e imputando, com detalhe, a surpresa a cidadãos e autarcas locais. A notícia do “Público” indica de modo correcto aquele que seria o benefício da alteração do traçado: “Um traçado que surpreendeu autarcas e moradores e que poupa a Quinta da Gata, que assim não terá de ser parcialmente expropriada.”

Pouco depois de publicada, às 17h00, o “Público” emenda o pormenor picante da notícia: “Notícia corrigida às 17h00, com a retirada da menção ao Grupo Solverde como proprietário da Quinta da Gata, dado que tal ligação não se verifica. Pelo lapso, o PÚBLICO pede desculpa aos leitores e aos visados.” Muito bem. Ou seja, a “primeira” notícia do “Correio da Manhã” que me atraiu a atenção já era mentira quando foi publicada – às 19h31 do mesmo dia 7 de Março – e já se podia saber que era mentira. O próprio “Público” o dissera, corrigindo o texto e mantendo-o assim publicado. Mas, no dia a seguir, às 01h30 do dia 8 de Março e na edição em papel, o “Correio da Manhã” escreve nova peça mais desenvolvida sobre o tema, em que já aponta correctamente o “benefício alegado (“A nova proposta da linha do TGV, na zona de Espinho, permite salvar a Quinta da Gata, propriedade da família Violas, de um corte a meio, como resultaria do traçado inicial apresentado pela Infraestruturas de Portugal (IP).”), mas embrulha ainda mais a intriga da “família Violas” e, por arrasto, o primeiro-ministro. A fotografia usada não é do TGV, nem da Quinta da Gata, nem do proprietário desta, mas dos primeiro-ministro e empresário Manuel Violas, em dia de golfe, com esta legenda: “Alteração da linha do TGV salva quinta da família Violas”. Chafurdo mais chafurdo não há.

Não houve só o desmentido do “Público”, mas também o desmentido do “Expresso”. De facto, o “Expresso” também escrevera sobre a história do traçado do TGV no mesmo dia 7, às 15h16: “Junta diz que traçado do TGV em Espinho foi alterado sem aviso”.  Pelos vistos, esta notícia também falava na Quinta da Gata, associando-a ao dono da Solverde. Mas, um pouco mais tarde, a notícia foi alterada por forma a que nem Gata, nem gato. Explica o “Expresso”: “Nota: notícia corrigida às 17h20, retirando informação divulgado pelo jornal Público, que tinha noticiado que a alteração do traçado poupava a Quinta da Gata, que seria propriedade do grupo Solverde, o que não se confirma.”

No dia 8 de Março, um conhecido site de notícias, o ZAP, dedicou atenção a esta questão: “O que têm Montenegro e a Solverde a ver com uma quinta e o novo traçado do TGV em Espinho?” No final, sintetiza: “O Público começou por anunciar que o Grupo Solverde seria o proprietário. Mas depois retirou essa informação, apontando que “tal ligação não se verifica”. O Expresso também fez eco da notícia, mas acabou por apagar a informação relativa ao Grupo Solverde.”

Além dos desmentidos do “Público” e do “Expresso”, quanto ao aspecto essencial da intriga política, a Lusa também deu conta, ainda a 7 de Março, de um esclarecimento da Infraestruturas de Portugal (IP): não houve qualquer alteração do traçado do TGV. Ter-se-ia passado o seguinte: “o concurso lançado ainda no tempo do Executivo de António Costa previa uma faixa de variação de traçado de 400 metros, dentro do qual o concessionário do concurso poderá, em sede de projeto de execução, optimizar o traçado final”. Encontrei este esclarecimento na notícia do Observador” de 7 de Março, às 18:55: “Traçado da alta velocidade em Espinho não foi alterado (diz Governo), mas há faixa de 400 metros para ajustar.” E também na notícia do “Expresso” às 20h48 do mesmo dia 7: “Espinho: IP diz que traçado inicial do TGV não é definitivo e consórcio pode alterá-lo”.

 Ou seja, já era tudo mentira ao fim da tarde de 7 de Março: nem a quinta era da Solverde, nem houvera alteração do traçado. Mas “Correio da Manhã” e canais televisivos do grupo, CMTV e NOW, seguiram a ecoar a história sem a corrigir. As notícias televisivas foram especialmente coloridas e sugestivas. Diz a notícia da NOW de 9 de Março, às 11h44: “Nova proposta da linha do TGV permite salvar quinta de um familiar do dono da Solverde.” E mantém o guião inicial de saltar de Viola em Viola até à Solverde final, a fim de esticar a linha até primeiro-ministro e família. A SIC-Notícias, no dia 7, às 22h24, também procurava apimentar ainda a propriedade da Quinta da Gata. É possível que o mesmo ocorresse noutros órgãos: estes fogos quando pegam ardem quais incêndios de Verão.

3.

 Está bem verberar o populismo, mas convém não cair nele, nem o alimentar. Penso há muito que vivemos a crise do Estado-espectáculo. Respeita a políticos e partidos, é certo. Mas o espectáculo é na comunicação social que se desenrola, com cada vez menos regras de decência e de equilíbrio mínimos, a um ritmo desenfreado que nos ultrapassa a todos e leva tudo de roldão. Gritamos em defesa da democracia, mas estamos a demoli-la. Apontamos ao fascismo, mas não cuidamos do jornalismo. Tempos enlouquecidos de 24 horas em contínuo, que não deixam parar, nem pensar.

Aqui há gata


Mas o espectáculo é na comunicação social que se desenrola, com cada vez menos regras de decência e de equilíbrio mínimos, a um ritmo desenfreado que nos ultrapassa a todos e leva tudo de roldão.


1.

 Sobretudo quando os casos aquecem, é fundamental que os escrutinadores mantenham a serenidade. Se não for assim, é difícil entender exactamente o que se passa. E a comunicação deve manter distância, imparcialidade e isenção, ajudando à objectividade dos juízos e ao conhecimento da verdade. Infelizmente não é assim. Anda tudo em campanha, enquanto a democracia se afunda.

No enredo em que se cerca o primeiro-ministro, há um caso singular que mostra a doença em que estamos. Tropecei nele por acaso. Escrevi no Facebook sobre o que atraiu a minha atenção. Mas o estendal é mais vasto.

2. 

 A notícia em que tropecei foi no “Correio da Manhã” com este título: “Família Violas é dona de quinta que pode beneficiar com novo traçado do TGV”. A notícia visava servir este guião mental: a quinta, não sendo do líder da Solverde, era de um parente e, portanto, da “família”, tudo a mesma coisa; Montenegro foi advogado da Solverde, de que negociou com o governo António Costa a extensão da licença; Montenegro e Solverde estão no centro da polémica, por causa da Spinumviva; a Solverde pagou à Spninumviva uma avença mensal, para remunerar favores diversos, desde a concessão do jogo nos casinos ao traçado do TGV. A notícia está escrita de forma que parece sugerir que o “benefício” para o dono da Quinta da Gata, cujo nome é sempre omitido, seria o TGV passar a atravessá-la. O “benefício” possível poderia ser, assim, o proprietário passar a dispor de TGV à porta ou de ir obter lucros chorudos com a expropriação de terrenos da Quinta – em ambas as hipóteses, disparates completos.

Esta notícia foi, afinal, uma de várias, quase todas lastimáveis. Tudo começou por uma notícia no “Público”, às 15h28 de 7 de Março: “Expropriações para a alta velocidade em Espinho assumem traçado diferente. Alteração ao traçado da linha de alta velocidade surpreende autarcas e moradores de Espinho. Novo desenho é diferente do que foi apresentado pela IP.” O enredo sugerido não era muito diferente do CM, embora com extensa menção das fontes e imputando, com detalhe, a surpresa a cidadãos e autarcas locais. A notícia do “Público” indica de modo correcto aquele que seria o benefício da alteração do traçado: “Um traçado que surpreendeu autarcas e moradores e que poupa a Quinta da Gata, que assim não terá de ser parcialmente expropriada.”

Pouco depois de publicada, às 17h00, o “Público” emenda o pormenor picante da notícia: “Notícia corrigida às 17h00, com a retirada da menção ao Grupo Solverde como proprietário da Quinta da Gata, dado que tal ligação não se verifica. Pelo lapso, o PÚBLICO pede desculpa aos leitores e aos visados.” Muito bem. Ou seja, a “primeira” notícia do “Correio da Manhã” que me atraiu a atenção já era mentira quando foi publicada – às 19h31 do mesmo dia 7 de Março – e já se podia saber que era mentira. O próprio “Público” o dissera, corrigindo o texto e mantendo-o assim publicado. Mas, no dia a seguir, às 01h30 do dia 8 de Março e na edição em papel, o “Correio da Manhã” escreve nova peça mais desenvolvida sobre o tema, em que já aponta correctamente o “benefício alegado (“A nova proposta da linha do TGV, na zona de Espinho, permite salvar a Quinta da Gata, propriedade da família Violas, de um corte a meio, como resultaria do traçado inicial apresentado pela Infraestruturas de Portugal (IP).”), mas embrulha ainda mais a intriga da “família Violas” e, por arrasto, o primeiro-ministro. A fotografia usada não é do TGV, nem da Quinta da Gata, nem do proprietário desta, mas dos primeiro-ministro e empresário Manuel Violas, em dia de golfe, com esta legenda: “Alteração da linha do TGV salva quinta da família Violas”. Chafurdo mais chafurdo não há.

Não houve só o desmentido do “Público”, mas também o desmentido do “Expresso”. De facto, o “Expresso” também escrevera sobre a história do traçado do TGV no mesmo dia 7, às 15h16: “Junta diz que traçado do TGV em Espinho foi alterado sem aviso”.  Pelos vistos, esta notícia também falava na Quinta da Gata, associando-a ao dono da Solverde. Mas, um pouco mais tarde, a notícia foi alterada por forma a que nem Gata, nem gato. Explica o “Expresso”: “Nota: notícia corrigida às 17h20, retirando informação divulgado pelo jornal Público, que tinha noticiado que a alteração do traçado poupava a Quinta da Gata, que seria propriedade do grupo Solverde, o que não se confirma.”

No dia 8 de Março, um conhecido site de notícias, o ZAP, dedicou atenção a esta questão: “O que têm Montenegro e a Solverde a ver com uma quinta e o novo traçado do TGV em Espinho?” No final, sintetiza: “O Público começou por anunciar que o Grupo Solverde seria o proprietário. Mas depois retirou essa informação, apontando que “tal ligação não se verifica”. O Expresso também fez eco da notícia, mas acabou por apagar a informação relativa ao Grupo Solverde.”

Além dos desmentidos do “Público” e do “Expresso”, quanto ao aspecto essencial da intriga política, a Lusa também deu conta, ainda a 7 de Março, de um esclarecimento da Infraestruturas de Portugal (IP): não houve qualquer alteração do traçado do TGV. Ter-se-ia passado o seguinte: “o concurso lançado ainda no tempo do Executivo de António Costa previa uma faixa de variação de traçado de 400 metros, dentro do qual o concessionário do concurso poderá, em sede de projeto de execução, optimizar o traçado final”. Encontrei este esclarecimento na notícia do Observador” de 7 de Março, às 18:55: “Traçado da alta velocidade em Espinho não foi alterado (diz Governo), mas há faixa de 400 metros para ajustar.” E também na notícia do “Expresso” às 20h48 do mesmo dia 7: “Espinho: IP diz que traçado inicial do TGV não é definitivo e consórcio pode alterá-lo”.

 Ou seja, já era tudo mentira ao fim da tarde de 7 de Março: nem a quinta era da Solverde, nem houvera alteração do traçado. Mas “Correio da Manhã” e canais televisivos do grupo, CMTV e NOW, seguiram a ecoar a história sem a corrigir. As notícias televisivas foram especialmente coloridas e sugestivas. Diz a notícia da NOW de 9 de Março, às 11h44: “Nova proposta da linha do TGV permite salvar quinta de um familiar do dono da Solverde.” E mantém o guião inicial de saltar de Viola em Viola até à Solverde final, a fim de esticar a linha até primeiro-ministro e família. A SIC-Notícias, no dia 7, às 22h24, também procurava apimentar ainda a propriedade da Quinta da Gata. É possível que o mesmo ocorresse noutros órgãos: estes fogos quando pegam ardem quais incêndios de Verão.

3.

 Está bem verberar o populismo, mas convém não cair nele, nem o alimentar. Penso há muito que vivemos a crise do Estado-espectáculo. Respeita a políticos e partidos, é certo. Mas o espectáculo é na comunicação social que se desenrola, com cada vez menos regras de decência e de equilíbrio mínimos, a um ritmo desenfreado que nos ultrapassa a todos e leva tudo de roldão. Gritamos em defesa da democracia, mas estamos a demoli-la. Apontamos ao fascismo, mas não cuidamos do jornalismo. Tempos enlouquecidos de 24 horas em contínuo, que não deixam parar, nem pensar.