Michael Longley. Um discreto oráculo versado nos clássicos


1939-2025. Do lado dos clássicos e da natureza, fez disso a sua lucidez.


Um dos mistérios mais cativantes do conhecimento que fazemos da realidade, e de que todos os grandes poetas em algum momento se dão conta, foi expresso por Heidegger quando notou que, quanto mais conhecidas se lhes tornam as coisas cognoscíveis, mais estranhas são e permanecem para eles. É como se o mundo preservasse o seu fascínio não admitindo a posse, mas instigando um elemento de errância, de busca incessante, uma tentativa de se reconhecer os elementos imutáveis, e ler a última frase, na última página. Mas as letras do mundo tornam-se etéreas, essas serifas de mármore, sólidas hastes erguidas nas rochas e postas nos ápices, e que ascendem como as colunas na história… Assim vai a evocação do poeta irlandês Seamus Heaney, que, às tantas, debruçado e procurando traduzir esses relevos antigos, nos fala de como, pela atenção minuciosa, somos empurrados para um delirante credo. E tomamos este balanço dias depois de ter morrido Michael Longley, aos 85, o último sobrevivente desse espantoso triunvirato de poetas da Irlanda do Norte que incluía Heaney e Derek Mahon. Conhecido pela beleza meditativa das suas composições tão breves, quanto imperturbáveis, muitas das quais aludiam à mitologia e à natureza, Longley era o mais reservado dos três, o único que nunca deixou Belfast, e ali morreu a 22 de janeiro, sem grande fanfarra. A morte veio na sequência de complicações, depois de se ter submetido a uma cirurgia à anca.

As primeiras influências

Descrito por Heaney como um guardião de um legado imemorial, Longley tomava um tremendo balanço ao medir as tensões contemporâneas, e servia-se de alusões clássicas para filtrar uma luz capaz de provocar um desequilíbrio nas perceções, tendo muitas vezes tomado posição sobre os «Problemas», termo utilizado para caracterizar os conflitos sectários na Irlanda do Norte desde o final dos anos 60 até ao Acordo de Sexta-Feira Santa em 1998. Contudo, o mundo natural era a verdadeira constante no sue trabalho, a pedra onde afiava o olhar, procurando uma fala irmã do silêncio, um rigor e uma oficina depurada que fazia do elemento de contenção e concentração o regime mais hábil para desencadear uma emoção profundamente sentida. As suas primeiras influências foram poetas ingleses como Philip Larkin, Louis MacNeice, poetas da I Guerra Mundial, bem como mestres da tradição clássica. O crítico Langdon Hammer exaltou nos seus poemas a «lucidez, economia, sinceridade… através de uma técnica meticulosa e despretensiosa». Quando questionado numa entrevista de 1998 sobre a disciplina formal que o ajuda a produzir poemas de quatro e duas linhas, Longley respondeu: «Foi Tennyson que disse que uma letra perfeita inscreve a forma de um S? Esse sentido de gesto, a forma como se usa a mão quando se faz uma vénia, quando se estende a mão para apertar a mão de alguém, quando se vai acariciar um gato, quando se segura a mão de uma mulher para a levar para a pista de dança».

A poesia de Longley

Nele havia um domínio da linguagem como se esta devesse respeitar leis muito concretas, aquele empenho de quem reconhece na poesia esse labor, em termos de imaginação e sensibilidade, de que se ocupam os estão devotados a um combate pela realidade. Leia-se, a título de exemplo, o poema A Secção Ornitológica: «Pássaros, tão celestiais bricabraques/ Sem as suas entranhas, sem os seus medos,/ Apesar das partes vitais que lhes faltam/ Têm aqui mantido o seu justo tecido,/ Mantiveram o seu equilíbrio/ Tão perfeitamente, tantos anos,/ Não perderam mais do que o impulso,/ A sua única intempérie é o pó e a traça.// Para que façanhas e farras se dirigem,/ Em direção a que continentes migram,/ Ou simplesmente porque desaparecem,/ Com penas garras bicos e plumas/ Martim-pescador falcão dodó cisne/ Na vida, na morte podem ilustrar,/ E para fins ornitológicos, guardem/ Os seus uniformes, os seus melhores trajes.// Neste tesouro antinatural,/ Apesar de assim mantido pelos seus próprios cenários/ E fixados em augúrios congelados,/ Do passado se lançam e vagueiam,/ Em céus tão diferentes para figurar,/ Em tantas praias meio esquecidas,/ E dirigem-se para o futuro,/ Por alguma profunda necessidade que lhes transmitimos (…)».

A tradição clássica, e especificamente a literatura grega e latina, foi uma característica fundamental da poesia de Longley. «Homero assombra-me há mais de 60 anos», disse num discurso em 2022. No fundo, era como se o tempo devesse ser apercebido como uma estrutura, sendo impossível reconhecer os seus caracteres sem ter desenvolvido uma graduação que permitisse aliar o sentido de urgência a um contexto mais vasto. Ele «tinha uma capacidade extraordinária de regular a sua perceção de modo a que mitos que poderiam parecer pouco pertinentes se tornassem reveladores, em particular nas suas muitas adaptações de Homero», escreveu o poeta Paul Muldoon no prefácio da coleção de poesia de Longley de 2024, Ash Keys.

A tradição clássica

Um exemplo deste processo encontra-se no mais célebre dos seus poemas, Ceasefire, escrito em 1994 e publicado no The Irish Times pouco depois do cessar-fogo provisório do I.R.A. Nele, Longley compara a tão pungente cena da “Ilíada” em que Príamo pede a Aquiles que lhe devolva o corpo do filho, Heitor, que ele tinha morto, à reconciliação dos inimigos durante as conversações de paz na Irlanda do Norte. Assim, o poeta lembrava-nos como em qualquer época, é sempre o elemento de radical fragilidade e dos afetos que se estabelecem entre os homens que permitem fazer apelo aos ecos da História humana no seu conjunto, de tal modo que, mesmo entre inimigos, é possível digerir o vidro e entre cá e lá produzir-se um reflexo de tal modo potente que nos poupe ao pior desfecho.

Nesse sentido, a tradição clássica deve ser lida tanto pelo terror como pela ternura que humedece as melhores páginas. E a compreensão poética é aquela que se dá conta de que a apropriação, ascensão e transfiguração da mais quotidiana e humilde verdade terrestre, aproveita também a esses momentos de perigo e de ameaça, quando se é chamado a compreender que a inteligência nasce dessa capacidade de ler o futuro dentro das sombras que projeta diante de nós o passado. Em 2022, quando ganhou o Prémio Internacional de Poesia Feltrinelli, atribuído de cinco em cinco anos e que vem com uma bolsa de 250.000 euros, no discurso de aceitação, citou a obra de Vasyl Stus, um dos poetas ucranianos mais aclamados e desafiantes durante o regime soviético: «Há uma luta; estou no campo de batalha/onde todos os meus soldados são as palavras que empunho».