O futebol não dispensa uma irascível erudição, essa que se constrói entre a rulote das bifanas e o estádio, de jornal na mão, com um rádio por perto a cilindrar quem ouve com informações e teses ansiosas, como se na véspera de uma batalha decisiva. E o verdadeiro adepto é uma figura da escolástica num ramo obscuríssimo, mas que, por se encontrar em maioria, conseguiu subverter as hierarquias de valores filosóficos, impondo a sua munição de estatísticas e lendas, uma vertiginosa e labiríntica biblioteca feita de trivialidades, casos de todo o tipo, mais e menos coloridos, noções ociosas, teorias de alto teor conspirativo, mas nunca inteiramente improváveis, um fabulário de personagens que supera o vigor das mais destrambelhadas ficções, tudo decorado e pronto a ser usado logo que se aviste um adepto de outras cores e convicções. Fazendo a ponte entre este saber tresvariado e o universo dos valores clássicos, estava Manuel Sérgio, alguém que reconheceu bem como as mitologias do desporto não deixam de ser bastante úteis aos intérpretes da vida moderna. «O desporto reproduz e multiplica as taras da sociedade capitalista. A mania do rendimento, do recorde, da medida, da alta competição…», reconheceu ele numa entrevista ao Expresso. Ele era o filósofo que integrava o departamento de futebol, e que sabia como todos os caminhos, hoje, vão dar ao desporto. E se antes ninguém se lembraria de reconhecer a importância de Descartes para analisar o que se passa entre as quatro linhas, se os adeptos continuam com dificuldade em situar o tipo, perguntando-se se alguma vez jogou pelo Benfica, este filósofo e ensaísta, que deu aulas a José Mourinho, Rui Vitória e José Peseiro, entre outros, operou uma mudança de paradigma, «ou um corte epistemológico, no seio da cartesiana educação física, passando do fisiologismo, ou do biologismo que o dominava e dominava também o treino desportivo, adiantando que o desporto é um dos aspetos de uma nova ciência humana». Considerado o ‘pai’ da motricidade humana, este homem que morreu na quarta-feira, aos 91 anos, alargou o campo da educação física, numa articulação com outras ciências sociais. Assim, em vez de uma abordagem fechada nos aspetos fisiológicos, Sérgio entendeu que «o que se estuda no desporto é o homem a superar-se», sendo necessário por isso ver o seu humano sempre como «uma tarefa por cumprir». Esse elemento de transcendência foi o núcleo das suas investigações ao longo de décadas, tendo publicado mais de meia centena de títulos dedicados à articulação desta área com a filosofia e a política.
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Manuel Sérgio. O filósofo mais citado nos balneários
1933-2025. O homem que pôs Descartes a jogar como titular.