A génese. É Israel um Estado artificial ou de pleno direito?

A génese. É Israel um Estado artificial ou de pleno direito?


O Estado de Israel nasce a 14 de maio de 1948, pouco depois de terminar o mandato britânico no território. A iniciativa foi apoiada pelas grandes potências, mas a controvérsia continua na atualidade.


O mais recente conflito entre Israel e a Palestina, desta vez entre o estado judaico e o Hamas, fez ressurgir vários e acalorados debates sobre a região, a sua história e as características do Estado de Israel. Tendo abordado as suas raízes que remontam aos anos de 1917 e 1922 – datas da Declaração Balfour e do mandato britânico da Palestina, respetivamente –, viajemos agora até aos anos da Segunda Guerra Mundial.

A chegada de Hitler ao poder na Alemanha, assente no objetivo de voltar a levantar o país da ruína após a humilhação imposta pelo Tratado de Versalhes, identificou um inimigo que seria, segundo o ditador alemão, a causa de todos os males da nação germânica: os judeus. Os campos de concentração espalhavam-se um pouco por todo o território que Hitler via como Lebensraum (espaço vital), e eram a ferramenta que lhe permitiria atingir a “solução final”. Este período de terror é uma marca indelével na história da humanidade, principalmente na história do povo judeu. A vitória aliada, consumada em 1945, colocou um ponto final na chacina, um genocídio que hoje é amplamente conhecido como o Holocausto.

Mesmo existindo a possibilidade de um sentimento de dever, “o Presidente Franklin D. Roosevelt tinha assegurado aos árabes, em 1945, que os Estados Unidos não interviriam sem consultar tanto os judeus como os árabes daquela região”, conta o Office of the Historian, uma ramificação do Governo americano responsável pela preparação e publicação da história documental oficial da política externa dos EUA, acrescentando que “os britânicos, que detinham um mandato colonial para a Palestina até maio de 1948, opunham-se tanto à criação de um Estado judeu como de um Estado árabe na Palestina, bem como à imigração ilimitada de refugiados judeus para a região. A Grã-Bretanha queria manter boas relações com os árabes para proteger os seus interesses políticos e económicos vitais na Palestina”.

Apenas um ano mais tarde, e já com Harry S. Truman ao leme do Executivo americano, é que os EUA procederam à “aprovação de uma recomendação para admitir 100.000 pessoas deslocadas na Palestina e, em outubro, declarou publicamente o seu apoio à criação de um Estado judaico”. “Ao longo de 1947”, pode ler-se no arquivo histórico americano, “a Comissão Especial das Nações Unidas para a Palestina examinou a questão palestiniana e recomendou a divisão da Palestina num Estado judeu e num Estado árabe. Em 29 de novembro de 1947, as Nações Unidas adotaram a Resolução 181 (também conhecida como Resolução da Partição), que dividiria o antigo mandato palestiniano da Grã-Bretanha em Estados judeu e árabe em maio de 1948, data prevista para o fim do mandato britânico. Nos termos da resolução, a área de importância religiosa em torno de Jerusalém permaneceria um corpus separatum sob controlo internacional administrado pelas Nações Unidas”.

Estas foram as principais iniciativas que abriram as portas à criação do Estado de Israel, que viria a declarar a sua independência em 1948.

A declaração de independência

No seu documento fundador, Israel menciona principalmente o seu direito divino de possuir um Estado nesta região. “ERETZ-ISRAEL [(hebraico) – a Terra de Israel] foi o local de nascimento do povo judeu. Aqui foi moldada a sua identidade espiritual, religiosa e política.”, lê-se nas primeiras linhas de declaração de 14 de maio de 1948, proclamada por David Ben-Gurion. “Foi aqui que alcançaram pela primeira vez a condição de Estado, criaram valores culturais de significado nacional e universal e deram ao mundo o eterno Livro dos Livros”.

“Depois de ter sido exilado à força da sua terra”, continua o documento fundador israelita, o povo manteve-se fiel a ela durante toda a sua dispersão e nunca deixou de rezar e esperar pelo seu regresso a ela e pela restauração da sua liberdade política. Impelidos por este apego histórico e tradicional, os judeus esforçaram-se, em cada geração sucessiva, por se restabelecerem na sua antiga pátria. Nas últimas décadas, regressaram em massa. Pioneiros, ma’pilim [(hebraico) – imigrantes que vêm para Eretz-Israel desafiando a legislação restritiva] e defensores, fizeram florescer os desertos, reavivaram a língua hebraica, construíram aldeias e cidades e criaram uma comunidade próspera que controla a sua própria economia e cultura, amando a paz mas sabendo defender-se, trazendo as bênçãos do progresso a todos os habitantes do país e aspirando a uma nação independente”.

Os Estados Unidos reconheceram o Estado no próprio dia, tendo a outra superpotência da época, a União Soviética, reconhecido o nono país três dias depois. Porém, com o escalar da violência e das tensões na região ao longo dos últimos 77 anos, muitos colocam em causa a legitimidade do Estado.

A questão da legitimidade

Na declaração de independência, os israelitas comprometeram-se também a fundar um Estado com base no direito internacional e nos direitos humanos, assegurando “a plena igualdade de direitos sociais e políticos a todos os seus habitantes, independentemente da religião, raça ou sexo”, prometendo ainda a fidelidade “aos princípios da Carta das Nações Unidas”. “Mas, desde o início”, escreveram Ilan z. Baron e Ilai Z. Saltzman numa coluna para a Foreign Affairs em agosto do ano passado, “esta visão nunca foi concretizada”. “Afinal, durante quase duas décadas após a assinatura da declaração, os palestinianos em Israel viveram sob lei marcial. A sociedade israelita nunca foi capaz de resolver a contradição entre o apelo universalista dos ideais da declaração e a urgência mais restrita da fundação de Israel como Estado judeu para proteger o povo judeu”, argumentam os autores, afirmando que, após a tentativa de reforma judicial do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu no verão de 2023 e a reposta ao massacre de 7 de outubro, “o país está a seguir um caminho cada vez mais antiliberal, violento e destrutivo”.

Faisal Bodi, numa coluna publicada no jornal britânico The Guardian em 2001, afirmou que “não existe uma justificação moral para a existência de Israel” porque “é a concretização de uma afirmação bíblica”. “Essa promessa bíblica é a única reivindicação de legitimidade de Israel”, defendia Bodi, “mas o que quer que Deus quisesse dizer quando prometeu a Abraão que “à tua descendência darei esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates”, é duvidoso que pretendesse que fosse usada como desculpa para tomar pela força e pela chicana uma terra legalmente habitada e propriedade de outros”.

As críticas à conduta e à legitimidade têm sido constantes. Por isto, Alan M. Dershowitz, num artigo intitulado Countering Challenges to Israel´s Legitimacy  (Contrapondo os desafios à legitimidade de Israel, em português) publicado no Jerusalem Center for Security and Foreign Affairs, dedicou-se a rebater várias acusações. “Mais do que um mero centro populacional”, defende Dershowitz, “a Palestina continuou a ser um centro de piedade e misticismo judaico ao longo dos tempos”. “Os judeus europeus contribuíram para as instituições religiosas judaicas na Palestina e rezavam pelo regresso a Sião e a Jerusalém. Os judeus fora da Terra de Israel referiam-se a si próprios como vivendo na “Diáspora” e nunca abandonaram a sua reivindicação de regressar à terra de onde tantos dos seus antepassados tinham sido expulsos à força. A vida na Palestina era difícil para os judeus muito antes da imigração generalizada. Durante a ocupação egípcia da Palestina, na década de 1830, os judeus autóctones foram perseguidos sem piedade por fanáticos muçulmanos, apenas por fanatismo religioso. Mesmo assim, o regresso a Sião era a escolha natural dos judeus europeus oprimidos.”

Em resposta à acusação de que o Estado de Israel foi criado de maneira ilegal, o advogado americano argumenta que “Israel tem a origem mais legal de todos os países do mundo”. “Explicar as origens do Estado de Israel exige uma longa narrativa histórica. Mesmo antes da Primeira Guerra Mundial, existia de facto um lar nacional judeu na Palestina, constituído por 80 000 a 90 000 judeus. Os refugiados judeus da Palestina tinham criado esta pátria sem a ajuda de qualquer potência colonial ou imperialista. Tinham-se apoiado no seu próprio trabalho árduo para construir uma infraestrutura e cultivar terras que tinham comprado legalmente”. Assim, e recorrendo ao princípio de autodeterminação pregado por Woodrow Wilson, “estes judeus tinham o direito de determinar o seu próprio futuro”.