O exercício governativo pode ter diversos registos, em função das conjunturas de desafogo ou de restrição, com expressões que vão do simbólico ao rasgo de afirmação de uma visão para o país, coisa rara nas últimas décadas. Nas soluções governativas anteriores tivemos muito de projeção do simbólico, aliás o mesmo registo está presente na ida a Kiev do novo Presidente do Conselho no primeiro dia de mandato, mas o atual governo parece apostado em governar para as perceções como evidencia a trágico-comédia comunicação ao país às 20 horas de uma terça-feira sobre segurança interna. O exercício trágico-simbólico de expor as lideranças das forças de segurança a um friso propagandístico orientado para afagar as perceções dos cidadãos, provavelmente a toque de algum estudo de opinião, com o anúncio de um reforço de 20 milhões em recursos é poucochinho e não resolve no essencial as causas do problema. A circunstância, o anúncio e o tom, até com recurso ao jargão popular “à sombra da bananeira”, resultou no contrário do pretendido. Não reforçou o sentimento de segurança, não respondeu às eventuais perceções e muito menos atacou as realidades, as concretas da vida das pessoas e as políticas de afirmação dos populismos.
O problema da afirmação do Chega reside mais nas causas do que na expressão do exercício político da coisa. Erradicando as causas que fundam boa parte dos descontentamentos concretos e generalizados com o funcionamento do sistema, a coisa não pode medrar. Sendo assim, o que se tem de atacar são as causas, com métodos, sustentação e persistência, para que o descontentamento não seja mercado fácil para o populismo, o extremismo e o espalhafato político. Ora, anteriormente, deixou-se proliferar sementeiras de descontentamento, apesar dos evidentes sinais, não se atuou sobre as causas e preferiu-se combater pela retórica as consequências. Uma vez mais, a esquerda não soube responder a um novo desafio no quadro democrático e respondeu à bruta, com profusa verve acompanhada de inação nas respostas aos sinais e aos fenómenos que aconteciam no país, alguns longe das alcatifas do poder em Lisboa ou do espaço mediático. A coisa escalou e tornou-se um elefante na sala, com discursos populistas e moralistas, apesar das neblinas dos financiamentos e do funcionamento interno do partido. Até ao momento, depois do PRD, é o melhor exemplo de partido político totalmente presidencialista, centralista e com capacidade de projetar no plano local a áurea do seu líder, o que constituiu um evidente risco para a governabilidade nas próximas eleições autárquicas. A realidade é que sem atacar as causas que estão na origem da escalada, a palavra não resolve por mais autossatisfação que possa suscitar aos democratas e antifascistas, porque o Chega é o atual albergue português dos descontentamentos. Só a erradicação ou mitigação dos descontentamentos poderá produzir efeitos na afirmação da coisa, quando medra noutras latitudes e continentes.
O problema não é de perceção, é da realidade, da ausência de respostas para as pessoas, da falta de compromisso com as regras básicas do contrato social e da vivência em comunidade, dos territórios onde grassa a sensação de abandono pelo poder central, das disfunções dos serviços público e da incapacidade que o sistema democrático tem relevado em gerar soluções para os desafios estruturais, para as novas realidades e para o que se impõe para um futuro sustentável. A realidade é demasiado complexa para ser respondida por uma conversa televisiva em família do primeiro-ministro sobre a perceção de segurança, desmentida em qualquer quotidiano em que somos confrontados com deslaços de incivilidades ou de ações no limiar da ilegalidade, que são antecâmara de expressões maiores de destruição deste pressuposto de tudo o resto.
A pífia comunicação ao país, como outros exercícios de resposta às perceções do atual governo, por exemplo, de que estão efetivamente a fazer, a concretizar, a decidir, choca com a realidade, razão pela qual as sondagens não revelam nenhuma afirmação substancial da solução governativa nas intenções de voto.
Querer responder só às perceções, como acontecia anteriormente com o simbólico, dificilmente vai resolver os problemas. Pode entreter. Pode afagar os egos, mas no final os problemas estruturais e de circunstância, vão ditar a realidade concreta que desmente as narrativas. Na segurança interna, há necessidade de um esforço sustentado, permanente e eficaz de recursos humanos e materiais, não compatível com repelões de anúncios esporádicos, insuficientes e incapazes de responder aos problemas de sempre e às novas dinâmicas. Se querem responder às perceções trabalhe-se a malha fina dos contextos sociais, altere-se a consciência social dos direitos, deveres, liberdades e garantias, avalie-se se o modelo de organização existente corresponde às necessidades das comunidades e dos territórios e reforce-se a presença e a proximidade das forças de segurança. Se for apenas para afagar televisivos, podem persistir em comunicações às 20 horas e frisos de humilhação, em registo de quero, posso e mando, mesmo que sem mínimos de maioria parlamentar para aprovar o que as realidades e as perceções precisavam. Se é para resolver, é atacar as causas, com compromisso político para que as respostas sustentadas não mudem em função dos ciclos governativos.
NOTAS FINAIS
DA AMÉRICA, ANTES DO PIOR O MAU. Depois do arquivar do processo judicial sobre as anteriores eleições presidenciais só porque Trump foi eleito Presidente, o perdão presidencial de Joe Biden ao filho por posse ilegal de arma e fraude fiscal. Como é possível que uma democracia com separação de poderes e um acervo de valores permita este tipo de distorções, em causa própria e com uma visão legislativa de geometria variável.
MARCELO, DE POPULAR A POPULISTA. Perdido no labirinto do segundo mandato, primeiro com uma maioria absoluta, agora com um governo de direita que o tolera institucionalmente, o Presidente da República que já foi do popular das selfies e afins, lançou-se no fácil populismo de criticar o fim do corte de 5% nos salários dos políticos que remanescia do tempo da Troika. Pena que tenha estado caladinho com outras atualizações substanciais na justiça e noutras longitudes profissionais.