Maurizio Cattelan é um artista que transformou o comentário social e a provocação em formas de arte reconhecidas internacionalmente. Ao longo da sua carreira, criou um corpo de trabalho que varia entre o absurdamente engraçado, o desconfortavelmente perturbador e o profundamente reflexivo. E é exatamente isto que faz através de Comedian, a famosa banana com fita adesiva que, recentemente, foi vendida por milhões de euros.
Na vastidão branca de uma galeria, cercada de obras que clamam por profundidade, lá está ela: uma banana comum, presa à parede com uma tira de fita adesiva prateada. Não há moldura, pedestais ou explicações complexas. Apenas uma banana. Talvez fresca, talvez já a caminho de um estado de decomposição inevitável. No entanto, quando na passada quarta-feira, dia 20, o martelo do leiloeiro caiu na sede da Sotheby’s, em Londres, a simplicidade da fruta ganhou uma nova camada de absurdo: quase 6 milhões de euros.
A obra, intitulada Comedian, é um dos trabalhos mais emblemáticos do artista italiano Maurizio Cattelan, um provocador nato cuja carreira é uma história contínua de performances absurdas, esculturas que misturam ironia e desconforto e uma habilidade ímpar de fazer o mundo da arte questionar o próprio significado. Para Cattelan, a banana não é apenas um objeto: ela é um reflexo da nossa sociedade, uma sátira cruel do mercado de arte contemporâneo e, talvez, uma piada cósmica. Mas o que levou o mundo a pagar milhões por algo que qualquer pessoa pode recriar em casa? A resposta começa e termina com o próprio Cattelan: o homem, a lenda, o provocador.
O Espelho da Sociedade em Forma de Sátira
Maurizio Cattelan nasceu em Pádua, Itália, em 1960. Filho de uma família de classe trabalhadora, cresceu num ambiente que ele mesmo descreveu como opressor, o que talvez explique a sua inclinação por subverter qualquer forma de autoridade. A arte, para Cattelan, não era uma vocação predestinada, mas um refúgio improvisado – ou, como ele mesmo gosta de dizer, «uma desculpa para não trabalhar». Antes de ser artista, foi marceneiro, desenhista industrial e até mesmo assistente funerário. Talvez tenha sido este último trabalho que lhe ensinou a observar a mortalidade e a frivolidade humanas com uma visão mordaz e cínica. Nos anos 90, Cattelan começou a ganhar notoriedade com obras que desafiavam as convenções artísticas e sociais. Se há algo que define Maurizio Cattelan, é a sua habilidade de transformar o ordinário em extraordinário – e de fazê-lo com uma dose generosa de humor ácido. No entanto, esse humor não é meramente decorativo: constitui um mecanismo para dissecar estruturas de poder, dogmas religiosos e as hipocrisias do mercado de arte.
Um dos primeiros indícios da sua abordagem iconoclasta veio com Torno Subito (1989): um dos primeiros exemplos do seu estilo irónico e autodepreciativo. Em vez de apresentar obras numa exposição, Cattelan pendurou uma placa com a mensagem ‘Volto já’ na porta da galeria. A ausência de trabalho era o trabalho em si, uma declaração sobre a natureza performativa do ato de exibir arte. Em 1993, criou algo semelhante com Lavorare è un brutto mestiere (em tradução livre, ‘Trabalhar é uma profissão horrível’). A obra consistia numa placa de madeira onde estava escrito ‘Desculpe, estamos fechados’, pendurada na entrada da sua galeria. Em vez de exibir qualquer peça, Cattelan literalmente fechou a exposição. Era uma declaração tanto sobre a inutilidade do trabalho quanto sobre a própria arte como um sistema comercial.
O seu sentido de humor subversivo continuou com peças como Love Saves Life (1995): uma escultura que retrata uma mulher a tentar salvar um cavalo do afogamento numa banheira minúscula. Como muitas obras de Cattelan, combina absurdo e melancolia, sugerindo que os nossos esforços para salvar o que amamos frequentemente parecem ineficazes ou desproporcionais. Em La Ballata di Trotsky (1996), conhecemos um cavalo taxidermizado que parecia estar suspenso no meio de uma galeria, como se tivesse sido parado em pleno trote. A obra é uma metáfora visual para a inércia revolucionária, mas, como em grande parte do trabalho de Cattelan, também pode ser lida como uma piada – embora o público raramente saiba se deve rir ou refletir. Com Charlie Don’t Surf (1997), deu-nos a conhecer uma instalação que apresentava um menino sentado à mesa com os seus braços espetados por bocados de madeira que se assemelhavam a lápis. O trabalho foi interpretado como uma metáfora para as restrições sociais e educacionais impostas às crianças, levantando questões sobre o trauma e a conformidade.
Para além destas obras, criou também La Nona Ora (1999), uma escultura hiper-realista do Papa João Paulo II atingido por um meteoro. A imagem do pontífice, caído e vulnerável, provocou tanto indignação quanto fascínio. Foi um prenúncio do estilo Cattelan: desrespeitar, chocar e rir da pomposidade do poder e da religião. Ao longo da sua carreira, Cattelan provou ser um mestre na arte do sarcasmo visual. Em Him (2001), criou uma escultura de Adolf Hitler em tamanho infantil, ajoelhado em prece, que questionava a redentibilidade do mal.
Em 2011, no auge da sua fama, Maurizio Cattelan anunciou a sua reforma. Apresentou uma exposição retrospectiva no Museu Guggenheim, em Nova Iorque, intitulada All. As obras foram penduradas no átrio central do museu, como corpos num enforcamento coletivo, criando uma visão simultaneamente grandiosa e mórbida. Para muitos, essa seria a sua declaração final, um adeus teatral. Mas Cattelan nunca conseguiu realmente abandonar a arte. Talvez ele soubesse, no fundo, que a sua ausência apenas alimentaria o mito. Em America (2016), instalou uma sanita de ouro maciço numa casa de banho funcional do Museu Guggenheim, uma metáfora escancarada do capitalismo e do consumo desenfreado. Apesar do impacto visual e emocional dessas obras, nenhuma é tão simples – ou tão controversa – quanto Comedian, a banana que deu uma nova vida à arte como sátira.
Quando foi exibida pela primeira vez na Art Basel Miami Beach, em 2019, a reação foi imediata e polarizada. A peça não era apenas minimalista: era desafiadora na sua futilidade. «O que significa isto?», perguntavam os críticos. A resposta de Cattelan foi típica do seu estilo irónico: «É uma banana». Na verdade, Comedian representa muito mais. É um espelho de um mundo onde o valor é cada vez mais subjetivo, onde a ideia supera o objeto e onde o mercado de arte se tornou um espetáculo de exclusividade, em vez da procura por beleza ou significado. Quando a peça foi comprada por 120 mil euros em 2019, gerou indignação e memes em igual medida. Mas a história não terminou ali. O artista David Datuna, durante a exposição, arrancou a banana da parede e comeu-a, chamando ao ato «performance artística». A ação apenas aumentou a notoriedade da obra, transformando-a num mito cultural.
Cinco anos depois, a venda de Comedian por quase 6 milhões de euros trouxe novas camadas de perplexidade. O valor crescente da obra reflete não apenas a inflação monetária, mas a inflação simbólica: a ideia da banana vale mais do que a banana em si.
O que diz Cattelan sobre as suas vida e obra?
Cattelan, conhecido tanto pela sua obra provocativa quanto pelo seu humor ácido, frequentemente define a sua trajetória artística como uma combinação de casualidade e intencionalidade. Em várias entrevistas recentes, reflete sobre o papel do artista e as nuances da sua própria prática. Cattelan frequentemente autodeprecia-se, descrevendo-se como um «não-artista». Menciona que não se sente à vontade no mundo da arte tradicional. «Gosto mais de rostos do que de obras de arte», disse numa entrevista, enfatizando a relação humana em vez do objeto artístico em si. Essa abordagem desconstrói as normas do mercado de arte e questiona a ideia de permanência nas obras.
As suas obras, como a polémica Comedian, são marcadas por um humor que beira o absurdo. Descreve o humor como uma arma para desarmar o público e penetrar camadas de significado mais profundas. «Rir é a única coisa que nos resta», afirmou, sugerindo que o humor é uma forma de resistir às pressões do mundo. Apesar de ser uma figura central no mercado, Cattelan mantém uma relação tensa com este. Encara as suas obras como críticas ao próprio sistema que as sustenta, algo que o coloca numa posição contraditória. Essa dinâmica é evidenciada pela sua decisão de «se aposentar» da arte em 2011, apenas para regressar alguns anos depois com novas exposições grandiosas.
Em entrevistas, admite que muitas das suas ideias vêm de um lugar de desconforto. Sente-se atraído pelo fracasso e pela inadequação, conceitos que frequentemente explora nas suas esculturas e instalações. Essa visão levou-o a criar peças que desafiam os limites entre arte e performance, realidade e ilusão. Cattelan raramente trabalha sozinho. Vê a arte como um processo colaborativo e, por vezes, uma performance em si. «Não sou dono das minhas obras», costuma dizer, argumentando que o contexto e a receção pública desempenham papéis igualmente importantes no significado final.
Em entrevista para a LUX Magazine, por exemplo, Maurizio Cattelan discorre sobre a sua visão única da arte e sobre como a sua personalidade e experiências moldaram o seu trabalho. Cattelan reafirma que o humor é uma característica essencial da sua prática artística. Vê o riso como uma maneira de lidar com o absurdo e os desafios da vida contemporânea, transformando situações banais ou desconfortáveis em arte. Aborda a tensão entre o seu desejo de criticar o sistema e a sua participação inevitável no mesmo, destacando que essa dualidade é uma das marcas do seu trabalho. As suas peças muitas vezes funcionam como comentários irónicos sobre o valor atribuído à arte. Reconhece igualmente a fragilidade de ser artista, mencionando que a criação frequentemente nasce do desconforto ou da inadequação. Para ele, a arte não é sobre oferecer respostas, mas sobre formular perguntas provocadoras.
Todas estas reflexões ajudam a entender como Cattelan navega entre a crítica e a participação ativa no sistema da arte contemporânea, tornando-se tanto um ícone quanto um enigma para o público e para os seus colegas artistas. As suas declarações e obras continuam a alimentar debates sobre o propósito e os limites da arte na sociedade atual.
O Mercado como Performance
Cattelan divide opiniões como poucos artistas. Os seus críticos acusam-no de superficialidade e cinismo, argumentando que ele se apoia profundamente no choque e na provocação. Para esses detratores, obras como Comedian são exemplos de um mercado de arte vazio, onde o conceito de valor é determinado pela especulação. Outros, no entanto, veem Cattelan como um cronista brilhante da modernidade. Ele é frequentemente comparado a artistas como Marcel Duchamp e Andy Warhol pela sua capacidade de transformar objetos do quotidiano em comentários culturais incisivos. Curadores e críticos apontam a sua habilidade de criar obras que geram conversas – e é exatamente isso que ele deseja. Como ele mesmo disse certa vez: «A arte não precisa de agradar. Ela só precisa de te fazer sentir algo».
Cattelan também é celebrado pela sua compreensão única do mercado de arte. O artista não apenas participa no mesmo: manipula-o, usando as suas obras para expor as contradições do sistema que o sustenta. Apesar das controvérsias, é inegável que Maurizio Cattelan redefiniu os limites do que consideramos arte. As suas obras desafiam as convenções, brincam com o absurdo e forçam-nos a olhar para a nossa própria humanidade – com todas as suas falhas e ironias. Se a sua banana milionária é uma piada ou uma reflexão profunda sobre a nossa sociedade, cabe a cada espectador decidir. Para Cattelan, provavelmente não importa. Ele continuará a desafiar as nossas expectativas.
A venda milionária de Comedian é um microcosmos de tudo o que Cattelan critica na sua arte. É o triunfo do absurdo, onde a aura do artista é mais valiosa do que o objeto criado. Segundo críticos, a obra transforma colecionadores em personagens de uma comédia trágica: milionários dispostos a pagar fortunas por algo que, inevitavelmente, apodrecerá. Esta é a piada de Cattelan – uma piada que faz com a mais séria das intenções. Para o artista, a arte não é sobre permanência: é sobre o momento. A banana é um lembrete físico da transitoriedade da vida, do consumo e até mesmo do mercado de arte. Ela vai apodrecer. E quando isso acontecer, o que sobra? Apenas a ideia.
Mas seria Cattelan um génio ou um charlatão? Críticos mais céticos veem Comedian como o ápice de uma arte vazia, onde o conceito supera a execução de maneira superficial. Já os defensores apontam para a sua capacidade de refletir os absurdos da nossa era, transformando a banalidade em questionamento filosófico. O Observer, num editorial recente, criticou a venda da banana como um exemplo de decadência cultural. «Há algo profundamente desconfortável num mundo que celebra a futilidade enquanto ignora crises reais», escreveu o jornal. E, de facto, o timing não poderia ser mais irónico: uma fruta vendida por milhões num momento de desigualdade social crescente.
Por outro lado, talvez esse seja precisamente o ponto de Cattelan. Num mundo saturado de excessos, a sua banana atua como uma provocação necessária, uma lembrança de que estamos dispostos a valorizar o que não tem valor – desde que nos digam que devemos fazê-lo. Se há algo que Maurizio Cattelan entende melhor do que ninguém, é que a arte é, acima de tudo, uma conversa. Não importa se a banana é ridícula ou genial: importa que ela nos faz perguntar: o que é a arte? Quem decide o seu valor? E, em última análise, o que isso diz sobre nós? A banana, por mais efémera que seja, já se tornou eterna no imaginário coletivo. A sua venda por milhões de euros é mais do que uma transação: é uma performance em si, um espetáculo que encapsula o espírito da nossa época. E enquanto o mundo continua a debater, a rir e a ficar indignado, Cattelan permanece onde sempre esteve: no centro da controvérsia, a rir com – ou talvez de – todos nós.