Álcool: Mudam-se os tempos, mudam-se os gostos

Álcool: Mudam-se os tempos, mudam-se os gostos


‘Vamos a um restaurante e já não se vê ninguém beber whisky’. A frase é comum mas nem todos os dados mostram a quebra no consumo desta bebida. Os mais jovens, agora, preferem o consumo de licores e gins.


É certo e sabido que a Europa – e Portugal não é exceção – tem uma boa relação com o álcool. Dos vinhos às cervejas artesanais, passando pelas bebidas espirituosas, o consumo é bom, dizem os produtores, mas a verdade é que tem caído para algumas bebidas. Pelo menos é o que conta ao Nascer do SOL quem vive de perto com essa realidade. «Hoje em dia vamos a um restaurante e já não vemos ninguém beber whisky». Quem o diz, conhece bem o mercado. É António Martins, proprietário da Solbel, distribuidora de bebidas.

Mas não é o único. Em entrevista recente ao nosso jornal, Albino Oliveira, dono do mítico – e por agora encerrado – Snob confessou que «nos últimos tempos praticamente não se bebia whisky» e que a tendência ia mais para o vinho e para a cerveja. «Havia muito poucas pessoas a pedir whisky. As chamadas bebidas brancas foram muito consumidas no Snob entre finais dos anos 70 até 93. Nesse tempo vendíamos whisky que nunca mais acabava. O meu irmão, às vezes, comprava 30 caixas de uma vez. Também vendíamos 30 grades de cerveja por semana, nos últimos tempos não passava das sete, oito grades por semana», disse.

Uma opinião que é partilhada por António Martins. «O consumo caiu muito», diz, explicando que «quem se habituou a beber whisky foram pessoas vindas de África». Só que, acrescenta, «essas pessoas já não existem ou estão mais velhas. A malta jovem tem outras modas, há muita coisa agora e muitas novidades».

Nesse sentido, «o whisky está muito mais parado mas é uma diferença muito grande. O whisky ficou muito para trás». Até porque «era uma bebida de refeição» mas «hoje se for a um restaurante não vê ninguém a beber whisky. Há um ou outro que gosta mas é uma percentagem pequenina. Há uns 60, 50 anos evidentemente que num restaurante vinha sempre um copo de whisky para a mesa. Sinto muito isso no meu trabalho».

E conta outra curiosidade: «É preciso lembrar que uma grande percentagem do whisky que se comprava para Portugal ia parar a Angola e Angola está parada».

‘Houve uma fase em que todos bebiam whisky’

Quem nos faz uma viagem ao passado, relatando o presente e com perspetivas para o futuro é Diogo Saraiva e Sousa, figura que durante muitos anos esteve ligada a este setor. Começa por dizer-nos que «historicamente, houve uma fase em que toda a gente bebia whisky, fundamentalmente escocês», lembrando que havia inclusivamente «uma época em que havia muitos whiskys engarrafados em Portugal ainda que houvesse muitos aldrabados». Essa foi, garante, uma «fase de muito consumo de whisky escocês muito em especial devido ao regresso das tropas de Angola e Moçambique onde se bebia muito whisky lá e então todos os que estiveram lá, regressaram e bebiam cá. Nessa época, fundamentalmente, era isso que se bebia. Não se bebia mais nada».

Mas os tempos vão trazendo outros gostos. A partir de 1992, Diogo Saraiva e Sousa diz que passou a beber-se também whisky irlandês que era uma coisa que não existia praticamente, não tinha grande significado. E foi um dos grandes responsáveis por isso. «É ligeiramente diferente porque tem um método de fabricação diferente», diz. Mas a moda pegou e as mudanças continuaram. «Passado uns anos começou a haver uma mudança e começou a haver um pouco mais de gin mas apareceu o vodka que estava muito na moda. Então, havia restaurantes que tinham 50 marcas de vodka. Havia um bar ao lado da Casa dos Bicos que tinha para aí 70 marcas de vodka». Uma época que, confessa, durou pouco, «só uns anos».

Depois voltou o gin que ainda continua a ser moda. «Talvez tenha apagado um pouco a moda do vodka», diz-nos.

«Obviamente que o whisky continuou mas perdeu um bocado a exclusividade que tinha», lamenta o especialista. «Claro que os whiskys escoceses e irlandeses aguentaram-se um bocado mais que os whiskys de malte que davam um bocado mais de qualidade mas são mais caros e, portanto, em termos de volume, vendem-se menos», acrescenta.

Agora, é difícil dizer o que se gosta realmente porque a variedade é muita. «Mais recentemente trouxeram uma quantidade de bebidas já produzidas, já engarrafadas, em lata, etc que variam muito e é um pouco difícil identificar qual é que está mais na moda», confessa ao Nascer do SOL.

E recorda a Macieira que, nas suas palavras, chegou a ser a bebida em Portugal que vendeu mais em volume. «Chegaram a vender 700 mil caixas por ano, era uma loucura», recorda, assumindo que neste momento «a bebida que deve vender mais em Portugal deve ser o Licor Beirão de que também fui um bocado responsável porque também fui distribuidor. E ultrapassou de certeza a Macieira porque baixou muito. Mas como brandy porque como cream é outra coisa», atira, duvidando que algum outro licor ultrapasse a marca da Macieira ou do Licor Beirão.

Para o futuro, aposta no rum. Mas é preciso haver alterações. «Há uma bebida que tem vendido na Europa pouco comparativamente ao potencial que é o rum. É_muito popular nas américas mas o melhor rum é o cubano assim como o vinho do Porto melhor é o português. Há bons runs mas o cubano é o melhor». Só que, «devido ao bloqueio, os EUA não podem importar o Havana Club». Ainda assim, Diogo Saraiva e Sousa aposta que no dia em que esse bloqueio terminar «e o rum cubano possa entrar nos EUA, vai haver uma explosão de vendas de rum. E ao haver nos EUA, espalha-se por todo o mundo também. E nessa altura vai ultrapassar muitas outras bebidas».

Outra bebida que diz vender muito é a cachaça brasileira cuja origem é a mesma do rum: aguardente de cana de açúcar.

Dados contraditórios

Ainda que os vendedores se mostrem mais ou menos descontentes, os dados não mostram que o consumo de whisky tenha diminuído.

Ao Nascer do SOL, Ricardo André, Group Brand Manager da Pernod Ricard Portugal, revela que «segundo os dados da Nielsen, embora possam existir perceções de uma queda no consumo de whisky, os dados indicam um aumento ligeiro (+0,5%) durante o ano fiscal de 2024 (julho 2023 a junho 2024)».

Ou seja, garante, «não há uma descida no consumo de whisky». O que existe «é uma perda do peso do whisky face a outras categorias, como os licores cremosos e o gin».

Já João Vargas, secretário-geral da Associação Nacional de Empresas de Bebidas Espirituosas (ANEBE), começa por explicar ao nosso jornal que, em termos longitudinais, «tem existido um crescimento do mercado das bebidas espirituosas», sendo que em 2023 até voltaram aos valores anteriores à pandemia. Mas há um problema. «Infelizmente, estamos a ter uma quebra acentuada em 2024 devido ao aumento histórico da taxa do imposto especial sobre o consumo IABA (imposto sobre o álcool, as bebidas alcoólicas e as bebidas adicionadas de açúcar ou outros edulcorantes) e ao arrefecimento do turismo. Este crescimento do setor nos últimos 10 anos deve-se, essencialmente, ao contributo do turismo na nossa economia».

O whisky «não é imune a este crescimento, uma vez que é a categoria de bebidas espirituosas mais relevante do mercado nacional, estando muitas marcas de whisky no top 10 de vendas».

O responsável recorda que as bebidas espirituosas vendem-se mais em bares e discotecas e «dificilmente uma eventual descida de consumo em espaços de restauração espelhará uma quebra de consumo», destacando ainda «o desaparecimento de estabelecimentos tradicionais com maiores consumos de bebidas espirituosas associados, e que dão cada vez mais lugar a espaços de restauração com outro tipo de oferta».

A perceção de uma queda no consumo de whisky «pode ser influenciada por fatores como a maior visibilidade e dinamismo de outras categorias de bebidas direcionadas para faixas etárias mais jovens», acrescenta João Vargas.

Quem tem vindo a mostrar quebra no consumo é o vodka que, segundo Ricardo André, «registou uma queda de -1%», sendo assim «a única categoria com uma redução clara». E o responsável explica esta quebra. «Esta descida pode estar ligada à elevada concorrência com outras categorias que têm tido um crescimento mais dinâmico, especialmente o gin e os licores cremosos, que se revelaram mais atrativos para o consumidor».

Ricardo André revela então outras bebidas que têm visto o seu consumo disparar como é o caso do brandy (+3,1%) e os licores cremosos (+21,5%) que «cresceram de forma relevante, com os licores cremosos a destacar-se substancialmente», destacando que o sucesso de Macieira Cream, «que representa uma inovação dentro da categoria, é um dos fatores principais».

Uma das bebidas que parece estar na moda e que viu o seu consumo aumentar foi o gin. Ricardo André diz que o seu consumo cresceu 1,7%, «um reflexo da sua popularidade contínua no mercado português». Embora o crescimento seja moderado, o responsável justifica que «o gin mantém-se estável e atrativo, com destaque para a diversidade de cocktails e preferências dos consumidores mais jovens e urbanos».

A subida no consumo de gin é confirmada também por João Vargas, que confessa que esta apresenta «uma dinâmica muito grande no mercado, sobretudo com a entrada de muitas marcas nacionais e internacionais. Este dinamismo e diversificação levou a uma alteração nas preferências do consumidor, que se tornou mais sofisticado, procurando novas experiências e a ampliação da oferta de produtos premium».

Qual é, afinal, a tendência?

O responsável da Pernod Ricard Portugal defende que a tendência atual «mostra uma preferência por licores cremosos e gin, mais acessíveis e frequentemente utilizados em cocktails, atraindo principalmente faixas etárias mais jovens, que buscam novas experiências». Já o whisky e o brandy, «por outro lado, continuam a ter uma base de consumidores mais estabelecida e tradicional».

Por sua vez, o secretário geral da ANEBE refere que o mercado das bebidas espirituosas «tem tido altos e baixos nos últimos 15 anos». A década de 2010 começou com uma descida das vendas «e, consequentemente, dos consumos, mas o boom do turismo e a maior diversificação de marcas, quer portuguesas, quer estrangeiras, impulsionou o crescimento do nosso mercado», a que se junta o efeito dos produtos premium já referido.

Por outro lado, «o número de operadores com oferta de cocktails e bebidas com maior valor acrescentado e menor teor alcoólico tem sido uma tendência consolidada, assim como bartenders e profissionais de bar que têm crescido e com maior qualidade, graças às nossas escolas de turismo».

Junta-se a introdução de novos produtos no mercado, «como os RTD’s (Ready To Drink), bebidas com baixo teor alcoólico e onde um cocktail chega a casa de qualquer consumidor já feito, e os produtos ‘No-Low’ Alcohol, produtos sem álcool ou com baixo teor de álcool».

João Vargas aproveita para criticar o obstáculo que os impostos são ao crescimento das empresas do setor «retirando-lhes competitividade e levando também a uma retração no consumo e à escalada de fenómenos como o contrabando, contrafação e cross-border shopping», lembrando que apesar de o IVA ser mais alto em Espanha do que em Portugal, «a diferença entre o imposto IABA e o mesmo imposto em Espanha cifra-se em cerca de 40%». E pede mão do Governo.