Celeste Caeiro, mais conhecida como ‘Celeste dos Cravos’, faleceu na sexta-feira, 15 de novembro, no Hospital de Leiria, aos 91 anos, vítima de problemas respiratórios. Tornou-se um símbolo da Revolução do 25 de Abril de 1974 ao distribuir cravos vermelhos aos soldados do Movimento das Forças Armadas (MFA), transformando o gesto num marco histórico. “Celeste dos Cravos partiu, mas o seu legado permanecerá vivo na história e na memória de todos nós”, escreveu o Exército Português nas redes sociais, sublinhando que “são as pequenas ações que dão início às grandes transformações”.
Nascida em Lisboa, a 2 de maio de 1933, Celeste Caeiro teve uma infância marcada por dificuldades. Filha de uma galega, foi deixada em instituições de caridade após o abandono do pai. Cresceu em diferentes lares, desde a creche do Alto do Pina até ao Colégio de Santa Clara, da Casa Pia, onde recebeu formação em pré-enfermagem, embora nunca tenha exercido a profissão devido a problemas de saúde nos pulmões. Durante a juventude, começou a trabalhar em fábricas e tabacarias, despertando para a política ao assistir a julgamentos no Tribunal Plenário e ao participar na venda clandestina de livros críticos ao regime de Salazar. Teve uma vida marcada por desafios, incluindo violência doméstica, mas também resiliência e envolvimento social.
O momento que mudou a História
Em 1974, Celeste trabalhava no restaurante Sir, o primeiro self-service de Lisboa, localizado no edifício Franjinhas, na Rua Braamcamp. No dia 25 de abril, o restaurante planeava comemorar o seu primeiro aniversário oferecendo cravos às clientes e vinho do Porto aos clientes. No entanto, devido ao golpe de Estado em curso, a gerência decidiu encerrar o estabelecimento e deu os cravos aos funcionários. Com um molho de flores nas mãos, Celeste apanhou o metro até ao Rossio e encontrou os tanques do MFA na Rua do Carmo.
Curiosa, aproximou-se de um soldado e perguntou o que estava a acontecer. “Nós vamos para o Carmo para deter o Marcelo Caetano. Isto é uma revolução!”, respondeu-lhe o militar, que também pediu um cigarro, mas Celeste, sem cigarros para oferecer, deu-lhe um cravo. O gesto foi repetido com outros soldados, que começaram a colocar as flores nos canos das espingardas. Assim, Celeste tornou-se a protagonista de um ato que simbolizou a paz e transformou o 25 de Abril na Revolução dos Cravos.
Celeste sempre desmentiu versões alternativas da origem dos cravos na revolução, como a história de que teriam sido oferecidos por uma florista ou transportados de um aeroporto. Em entrevista à revista Crónica Feminina, em junho de 1974, esclareceu os detalhes do dia e ajudou a consolidar a memória histórica do seu gesto.
Celeste, uma das “capitãs de Abril”
A 7 de maio de 1974, o jornalista António José Saraiva escreveu no jornal República que “o cravo vermelho da Liberdade não tem autor conhecido, não foi proposto ou programado por qualquer organização. É anónimo e natural como tudo o que é vivo”. Mais tarde, Artur Varatojo, na Crónica Feminina, descreveu poeticamente o gesto de Celeste como algo simbólico da liberdade: “O cravo transformou-se em poucos dias na flor simbólica dum país… A primeira mão que soube colocá-lo ternamente no cano duma espingarda… Foi uma mulher – se duma mulher se trata – esse alguém tem direito a uma estátua imortal”.
O gesto de Celeste, apesar de simples, transformou-se num símbolo poderoso da Revolução e da mudança em Portugal. Para além das declarações que fez à Crónica Feminina, no livro Capitãs de Abril, da jornalista Ana Sofia Fonseca, o testemunho de Celeste é revelado com um luxo de detalhes, incluindo fotografias da sua infância e juventude. Posteriormente, no decorrer deste ano, o Diário de Notícias traçou um perfil de Celeste.
Neste artigo é evidenciado que a história desta mulher foi contada em várias entrevistas e reportagens, em que recordava com emoção o momento em que, sem pensar, distribuiu os cravos para os soldados, dizendo-lhes “Vocês são uns grandes HOMENS”. Celeste também revelou o seu envolvimento com a política e a sua revolta com as injustiças do regime, além de contar como assistia a julgamentos de presos políticos. Na sua vida, Celeste sempre se recusou a ter medo, apesar do clima de repressão.
A história dos cravos está também ligada a Tavira, onde os cravos eram cultivados no Posto Agrário e enviados para Lisboa. Guilhermina Martins Madeira, uma das responsáveis pela colheita, contou como os cravos eram enviados para a capital, especialmente no período que antecedeu o 25 de Abril, e como a distribuição deles foi uma surpresa para todos. O despachante Laranjeira, de Lisboa, foi o responsável por enviar os cravos para o Rossio, onde foram distribuídos durante a revolução.
Embora a história de Celeste tenha sido amplamente divulgada, a de Guilhermina só recentemente foi descoberta, graças a uma reportagem do Público que revelou o papel essencial de Tavira na revolução. Regressando a Celeste, os cravos que distribuiu, que poderiam ter sido outras flores, representaram a paz na revolução. Colocados nas espingardas pelos próprios soldados, esse ato espontâneo sinalizou a transição de um golpe militar para uma revolução pacífica. Muitos acreditam que, sem os cravos, o risco de violência seria maior, possivelmente incontrolável.
Celeste foi homenageada recentemente em desfiles do 25 de Abril, com o apoio da filha e da neta, que também lutaram pelo seu reconhecimento. Embora Celeste tenha sido celebrada em várias entrevistas e homenagens, a sua neta lamenta que nunca tenha recebido o devido reconhecimento oficial. Apesar disso, a memória de Celeste permanece viva, especialmente entre aqueles que reconhecem o seu papel na revolução.
Reconhecimentos tardios
Apesar das homenagens, depois do 25 de Abril, Celeste manteve uma vida modesta. Tornou-se militante do Partido Comunista Português e enfrentou novos desafios, como a perda de todos os seus bens no incêndio dos Armazéns do Chiado, em 1988. Nos últimos anos, viveu com uma pensão de 370 euros numa pequena casa em Lisboa, enfrentando problemas de saúde e dificuldades financeiras, e, mais recentemente, juntou-se à filha e à neta em Alcobaça. No decorrer deste ano, foi organizada uma campanha para lhe oferecer um aparelho auditivo.
“Na semana passada o aparelho auditivo que lhe permitia recuperar uma parte dessa perda avariou-se e, por ser já bastante antigo não tem arranjo, uma vez que a fábrica já não fabrica peças para aquele modelo por ter mais de 10 anos. Para agravar, precisa de outro, para o outro lado”, escreveu Carolina Caeiro Fontela, neta de Celeste, na campanha de angariação de fundos que realizou e ultrapassou o montante de 3.000 euros arrecadados. “Vive com uma reforma muito baixa e, infelizmente, os valores dos aparelhos auditivos são muito elevados. Ao longo destes 50 anos a minha avó sempre deu tudo o que podia, mas nunca foi reconhecida ou ajudada”, adiantou, deixando claro: “Decidi criar este Gofundme para a conseguir ajudar a adquirir os aparelhos e proporcionar-lhe condições de vida dignas. Ficaria muito grata se nos conseguissem ajudar!”.
No 50.º aniversário do 25 de Abril, Celeste foi homenageada em diversas ocasiões. Participou no desfile comemorativo na Avenida da Liberdade, onde, ao lado da família, distribuiu cravos, repetindo o gesto histórico. A sua presença foi amplamente destacada e fotografada. Durante a sessão solene no Parlamento, o deputado Rui Tavares sugeriu que fosse erguida uma estátua em sua homenagem na casa da democracia, reconhecendo o papel fundamental das mulheres trabalhadoras na história do país. A Câmara Municipal de Lisboa também aprovou a atribuição da Medalha de Honra da cidade e a criação de uma homenagem pública, ainda por concretizar.
Reações à sua morte
A morte de Celeste foi amplamente lamentada. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, expressou tristeza e anunciou que será condecorada a título póstumo. Marcelo revelou que, por motivos de saúde, Celeste não conseguiu receber a distinção em vida, mas que tinha conhecimento da homenagem e ficou feliz com a notícia. O primeiro-ministro, António Costa, também lhe prestou tributo: “Portugal despede-se da mulher que pôs os cravos na revolução”. Partidos como o PCP e o Livre destacaram a importância do seu gesto. “Enfrentou uma vida de dificuldades com perseverança”, escreveu o PCP, enquanto o Livre lembrou que Celeste “transformou a Revolução de Abril na Revolução dos Cravos, ao oferecer aos militares uma flor como símbolo de paz e esperança”.
Celeste Caeiro será sempre lembrada como a mulher que, com um gesto aparentemente simples, deu um novo símbolo à luta pela liberdade e pela democracia em Portugal. Aos 91 anos, deixa um legado de paz, coragem e transformação, lembrando que pequenos atos podem desencadear grandes mudanças. O corpo chegará às 10h à Igreja Paroquial de São José, em Lisboa, no domingo, onde ficará em câmara ardente. Às 14h30 haverá uma celebração no mesmo local e, de seguida, será realizada a cremação no cemitério do Alto de São João, como a ‘Celeste dos Cravos’ desejava.