Frank Auerbach. Viver para pintar

Frank Auerbach. Viver para pintar


1931-2024. Pintor e sobrevivente do Holocausto.


Especializou-se a pintar retratos complexos, empastados, por vezes quase torturados, e de grande carga expressiva e dramática. Os seus modelos eram sempre figuras do seu círculo próximo restrito – geralmente mulheres –, que tinham de posar estoicamente ao longo de meses, ou mesmo de anos, até Auerbach dar a obra por terminada. Pelo meio, o artista, que trabalhava obsessivamente, sete dias por semana, 365 dias por ano, pintava, raspava a tela e voltava a pintar, criando uma espécie de palimpsesto que conservava a história da feitura de cada retrato.

A quantidade de tinta usada chegava a ser tão abundante que alguns galeristas preferiam expor os seus quadros pousados na horizontal, não fosse a tinta, com o quadro pendurado na parede, escorrer pela tela abaixo. E as contas do seu abastecedor de bisnagas de tinta a óleo atingiam valores astronómicos. No caso dos desenhos a carvão, podia apagar e voltar a riscar tantas vezes que fazia buracos no papel – e era mesmo assim que ficavam. Frank Auerbach, pintor figurativo da chamada Escola de Londres, faleceu em sua casa na manhã de segunda-feira, aos 93 anos.

Morrer em Auschwitz

Apesar de firme e convictamente ancorado na tradição artística britânica, nasceu em Berlim, em abril de 1931, no seio de uma família judia. O pai, Max, era advogado e veterano de guerra; a mãe, Charlotte, era artista. Em 1939, tinha ele oito anos, com os demónios do antissemitismo postos à solta pelo regime nazi e a guerra na Europa na iminência de explodir, a sua família decidiu metê-lo num comboio, sendo o destino final a Inglaterra. Foi um dos cerca de onze mil beneficiários do Kindertransport, uma rede que levava crianças, sobretudo judias, para lugares mais seguros do que a Alemanha.

A decisão revelou-se providencial. O_contacto com os pais tornou-se espaçado, até se interromper por completo:_ambos tinham sido enviados em 1942 para o ignominioso campo de concentração de Auschwitz, onde haviam de perecer.

E o pequeno Auerbach adorou o país de acolhimento. Estranhamente, diria, já em adulto, que nunca tinha sentido a falta dos pais. «Acho que fiz aquilo a que os psiquiatras torcem o nariz: estou em total negação. Comigo funcionou muito bem. Para ser sincero, vim para Inglaterra e andei numa escola maravilhosa, e foi realmente um período feliz. Nunca houve um único momento na minha vida em que sentisse que gostaria de ter pais».

Essa escola, que descreveu como «uma pequena república», era um colégio interno originalmente fundado na Alemanha e posteriormente também ele trasladado para Inglaterra, para o Kent. Aí Auerbach mostrou um talento inato para as artes e o teatro. Mas, sentindo que ainda não tinha a preparação de que necessitava, em 1948 candidatou-se à St. Martin’s School of Art. Foi aceite.

Aprender a correr riscos

Ansioso por aprender, enquanto o ano letivo não começava, inscreveu-se numa outra instituição de ensino artístico, o Borough Road Polytechnic, onde pontificava um professor algo excêntrico, David Bomberg, que dizia aos seus alunos para procurarem «o espírito na massa». «Nestes anos do pós-guerra, a pintura inglesa era, com demasiada frequência, um naturalismo ilustrativo plasmado numa interpretação provinciana do espaço cubista», escreve Michael McNay no The Guardian. «Bomberg encorajava os seus alunos a trabalhar depressa e em grande, a correr riscos, a trabalhar a partir de uma visão primária confrontada com o motivo [da pintura] em vez de através de noções pré-concebidas de como deveria ser a arte».

Concluídos os estudos na St. Martin’s School, completou a sua formação no Royal College of Art, entre 1952 e 1955 – onde terminou o curso com distinção e direito a uma medalha de prata.

Por essa altura, em 52, encontrou a sua ‘voz’ – ou visão – enquanto artista, enquanto fazia um retrato de Stella West, sua amante durante vários anos. Insatisfeito com o que tinha obtido, não esteve com meias medidas. «De repente senti em mim coragem suficiente para voltar a pintar tudo aquilo de alto a baixo, irracional e instintivamente, e descobri que tinha conseguido fazer um quadro dela».

Essa pintura gestual, ‘instintiva’, com espessas camadas de tinta sobrepostas, haveria de ser a sua marca d’água ao longo de 70 anos de carreira.

Claro que tinha muito a ver com o expressionismo alemão dos anos 20 e 30, também reprimido e ridicularizado pelo nazismo, embora seja enquadrado na Escola de Londres, grupo liderado pelos seus amigos Francis Bacon, Lucian Freud e Leon Kossoff, e que se manteve como um baluarte de resistência da pintura figurativa contra outros movimentos como a pop art ou o expressionismo abstrato. Catherine Lampert, historiadora de arte que para ele posou ao longo de 40 anos, defendeu que no turbilhão de cores das suas telas cada marca de tinta tinha a sua ligação à realidade.

Pinturas de milhões

Em 1954, pouco tempo depois do momento de descoberta, Auerbach encontrou o estúdio em Camden Town onde trabalharia até ao fim da vida. Mais tarde, já célebre e com as suas pinturas a venderem-se por milhões de libras, poderia ter optado por um espaço mais amplo ou glamoroso, mas era naquele estúdio apertado e caótico, com as paredes manchadas e o chão salpicado de tinta, que se sentia confortável. Tão confortável, aliás, que várias vezes lá passava a noite.

Em 1958, casou-se com Julia Wolstenholme, sua colega no Royal College of Art, de quem teve um filho. Separaram-se mas voltariam a reatar a relação em 1976. De resto, o artista muitas vezes guardava ciosamente a identidade dos seus modelos – a sua pintura, sendo figurativa, não pode ser considerada realista – para não revelar demasiado acerca da sua vida sentimental pouco linear.

Era a pintura, dizia, que dava sentido à sua vida. «Tive sempre consciência da morte devido ao meu passado. E, de uma forma curiosa, a prática da arte e a consciência da iminência da morte estão ligadas. Se não fosse isso não sentiríamos necessidade de fazer o trabalho que a arte faz – escolher algo e pô-lo fora do tempo», disse numa rara entrevista ao Guardian. «Se não me tivesse dedicado à pintura, sentiria que tinha desperdiçado a minha vida».

Já perto do final, confessou à sua modelo e amiga Catherine Lampert que desejava, no tempo que lhe restava, «fazer mais algumas pinturas e ter uma morte fácil». Esse último desejo foi-lhe concedido. Frank Auerbach morreu «pacificamente» – anunciou a galeria Frankie Rossi Art Projects – na sua casa de Londres, de onde não gostava de afastar-se.