A vantagem da coerência, de se estar e defender o que sempre se defendeu, é não ter de estar a exercitar a criatividade para justificar aquilo que é contraditório com o que se disse e fez no passado. As circunstâncias invocadas para o anúncio de uma abstenção do Partido Socialista, na generalidade e na votação final global do OE para 2025, eram conhecidas e podiam ter fundado esse exercício de responsabilidade política há mais tempo, sem os zigue e os zagues da espécie de processo negocial ensaiada com o governo. Eram conhecidas, mas são válidas.
Não está em causa a penosidade ou contrição subjacente ao sentido enunciado, porque tal como no passado, após a chamada da Troika pelo PS e a derrota nas eleições legislativas de 2011, não estava em causa um exercício político em folha branca da projeção dos valores, dos princípios e da visão do partido e da sua liderança. Discordando da solução apresentada, ontem como hoje, era o país que estava em causa. O país que tem compromissos internacionais, com os quais muitos discordam, mas contam para a miríade de propostas que apresentam ao longo do ano e no momento orçamental. O país que tem dinâmicas que precisam da previsibilidade orçamental para poder funcionar em modo além da ligação à máquina. O país que espera pelas opções de tributação, de redistribuição e de construção de respostas aos problemas estruturais e aos do quotidiano.
Alheios aos verões passados, às responsabilidades anteriores e ao pragmatismo que aplicaram no exercício de funções públicas, quando a narrativa e a realidade, mas também os resultados, divergiram do acervo histórico, dos valores e princípios do partido, haverá sempre que, a contar com a falta de memória, se prepare para mais um exercício de ceifeira debulhadora, querendo levar tudo a eito. Foi assim no passado entre 2011 e 2014, com um posicionamento responsável ao centro-esquerda, será assim no presente quando as aves esvoaçam em torno da liderança para um desastroso acantonamento à esquerda ou para teorias de posicionamento tático divergente para justificar a alternativa e o combate ao Chega, não realizado a partir do exercício do poder, pela erradicação das causas de adubação do populismo, dos descontentamentos e da degradação do ambiente público. As ceifeiras debulhadoras estão à espera. Como se nada tivesse havido ontem e como se não houvesse amanhã, indiferentes à memória, à coerência e à necessidade urgente de mínimos de compromisso, não para o programa de A ou B, mas para responder ao que é vital para o país. Ou estão confortáveis com a subida da taxa de risco de pobreza, pela primeira vez em sete anos, e o aumento da intensidade da pobreza, o maior aumento desde 2012, depois de 8 anos de exercício político? Ou com outros indicadores que revelam a inconsistência dos resultados, sobretudo em questões estruturais, onde podemos colocar a carga fiscal e a qualidade da prestação dos serviços públicos essenciais para as pessoas e os territórios.
É fácil saber onde estiveram nos verões passados, apesar do que dizem hoje, confrontados com as dificuldades de estar na oposição, de ter uma diversidade de opiniões orientadas para o desgaste da liderança, de ter o poder posicionado para gerar dificuldades no maior partido da oposição, mas, ao invés de em 2011, contar com um grupo parlamentar configurado à medida da sua visão. Pois, não é fácil, mas no final, é o país como um todo que deve ser o ponto de referência, nem a idílica da arreigada ideologia sem nexo com a realidade, as vozes das contradições ajustadas ao umbigo ou as cedências aos maniqueísmos, aos radicalismos e às visões pontuadas apenas por nichos, urbanidades e outras expressões de parcialidade da sociedade portuguesa e do mundo. Haverá ainda quem, longe do estado a que chegámos, possa vir mais tarde ou mais cedo, depois de ter usado de todos os meios para atingir os fins, incluindo a promoção de abstenções e de compromissos com a direita, incluindo o acesso a cargos europeus, enunciar que “toda a abstenção é uma fraqueza” porque, pasme-se “os cidadãos não perdoam aos políticos os jogos floreados e a duplicidade”, mas isso, é do domínio do “é da vida”.
O problema das ceifeiras debulhadoras é a falta de triagem entre o que é para colher e o que é para preservar do corte, algo que também se coloca do lado de quem exerce o poder agora apostado na rega por aspersão de benefícios, ideias, projetos e iniciativas em nichos eleitorais transumantes nas opções de voto. Montenegro posiciona-se no domínio da rega por aspersão, para agradar ao maior número possível da classe média, dos descontentes e dos dependentes dos rendimentos e opções do Estado, para alimentar colheita que baste para um eventual recurso à ceifeira debulhadora eleitoral. O problema é comportar-se como feitor da fazenda, com fraco empoderamento pelos pares. Quando se for a circunstância, sem compromisso, vai com a ceifa da sementeira.
NOTAS FINAIS
MONTENEGRO E O TRANSFORMISMO DE CAVACO. Montenegro não disfarça. Está cada vez mais cheio do sim mesmo no exercício de primeiro-ministro, ainda que com uma minoria parlamentar absoluta. Vai daí, fustigou as heranças alheias e arvorou-se herdeiro do transformismo de Cavaco Silva. Só se for o das órbitas do BPN.
A NOVIDADE É RESGATAR CAVACO ATRAVÉS DE LEONOR BELEZA. O poder posiciona e cimenta, permite afastar medos e fantasmas. Daí o resgate do target Cavaco Silva/Leonor Beleza para a política partidária, por cima de Rui Rio, Durão Barroso e Pedro Passos Coelho, e a passadeira para Santana Lopes e Marques Mendes.
DEMOCRATAS Q.B. Que raio de conceção democrática. O BE nunca vai “aos congressos da direita”. Terá receio de contágio? É da praxe, parlamentar e democrática, a capacidade de dialogar com a diferença. Não o fazer é do domínio do totalitarismo.