- Estar reformado permite-nos inúmeras experiências que, anteriormente, enquanto trabalhávamos, não tivemos tempo para aprofundar devidamente e cujo prazer, de repente, começámos a gozar com lentidão, saboreando-as como se fossem doces de Natal.
Não falo, necessariamente, de um mais regular e descontraído exercício físico, que a disponibilidade de tempo permite manter ou reforçar.
Não falo sequer da possibilidade para viajar com data certa de partida, mas sem uma data rígida de chegada.
Não falo, ainda, da revisitação de alguns lugares que sempre vimos de fugida, sem neles termos reparado com a atenção que merecem.
Falo-vos de um prazer discreto, quase íntimo, o de ler e rever, como se mastigássemos, os livros e filmes que fomos colecionando ao longo da vida,
Livros e filmes, cuja leitura e visionamento atentos, nunca chegámos a fazer por estarmos, então, sempre ocupados com o trabalho, os assuntos familiares, os amigos, as férias que a todos têm de agradar, enfim com todos os rituais sociais e todas as burocracias quotidianas que, para viver satisfatoriamente, devemos cumprir.
Ao princípio, essa sensação boa não se revela totalmente, mas, depois, com o correr dos dias, com a correção voluntária da gestão do tempo, permitimos que este se alongue e se deixe saborear da forma que mais gostamos.
No meu caso, mesmo não me podendo queixar de, durante o trabalho, ter suspendido radicalmente as leituras e visionamentos de filmes e documentários sobre os assuntos que me interessavam, descobri, agora, alguns que havia posto de parte para ler e ver um dia e que, afinal, bem poderiam ter substituído o tempo mal gasto em outras atividades e em leituras e visionamentos que fiz.
Como parte desses presentes que fui guardando no baú, redescobri alguns livros excelentes e alguns documentários exibidos em canais de TV que, antes, pouco frequentava.
- Recordo-me, por exemplo, de já aqui ter chamado a atenção para uma notável novela de Erri di Luca – chamada, em francês, «Impossible» – que retrata uma conversa entre um Procurador italiano no ativo e um ex-militante revolucionário que havia participado em atividades de ação direta, em meados dos anos setenta do século passado.
Recordo, também, que descrevi tal novela como uma conversa em que cada um dos interlocutores, respeitando-se embora, não conseguiram encontrar uma linha de pensamento com sentido, que tornasse tal diálogo compreensível para ambos.
Visionei, entretanto, dois documentários que, de alguma maneira, reproduziam, também, essa verdadeira incompreensão nas conversas travadas entre pessoas com sentidos da vida totalmente diferentes.
- Um deles chama-se, precisamente, «Conversas com um Terrorista» e revela-nos uma entrevista conduzida, com mestria, por um jornalista a um ex-militante da ETA.
Nela se abordam temas como os da vida e da morte das vítimas da ETA e do sentido pessoal do homem que, de uma e outra maneira, participara em vários atentados mortais.
Tal entrevista – não romanceada – como acontece com a estória do autor italiano de que falei, choca, pois, na medida em que, mesmo admitindo que hoje não teria feito o que fez, o entrevistado não renega o seu passado, nem a legitimidade moral dos crimes que lhe foram imputados e pelos quais foi condenado.
A lógica e o sentido de vida do entrevistado – e trata-se, por isso, de uma entrevista sublime – são exibidas com fria sinceridade ao longo de mais de uma hora de conversa.
Há, ainda agora, no entrevistado, uma lógica de ferro que lhe permite, ao mesmo tempo, dizer que, hoje, não teria feito o que fez, enquanto legitima friamente, do ponto de vista político, a sua ação e a da organização em que militara.
Tal entrevista poderá, pois, servir de guia de leitura, interpretação e compreensão das conversas relatadas em «Impossible», designadamente as que se referem ao papel da Justiça, quer quando ela é usada numa sociedade totalitária, como quando funciona como fazendo parte do sistema constitucional de uma sociedade democrática, pluralista e, no fundamental, regida por um Estado de Direito.
- Dias depois, pude ver um outro documentário intitulado «La defensa, por la libertad» que descreve a importância que, na Espanha dos anos setenta do século passado, teve a intervenção judiciária coerente de um coletivo de corajosos jovens advogados de diferentes correntes políticas democráticas.
Com a sua intervenção concertada na defesa nos tribunais da ditadura dos trabalhadores e estudantes detidos pelo regime franquista em manifestações e protestos contra a situação política nesse país, contribuíram, eles próprios, para derrotar o regime.
Neste documentário evidencia-se o sentido de construção do bem comum que os entrevistados quiseram dar à profissão que escolheram: a advocacia.
Como no filme se relembra e bem, cientes da importância política da ação daqueles, os esbirros do regime franquista – elementos já então exasperados e armados da extrema direita radical – assassinaram, em 1977, na chamada «matança de Atocha», uma parte do grupo de jovens advogados que se haviam predisposto a defender sindicalistas detidos.
O referido documentário, baseado nos depoimentos de alguns que integraram, nesse tempo, esse coletivo informal de advogados jovens, revela, ainda, como foi possível incorporar a atividade profissional da advocacia como uma componente adicional na luta política mais geral de trabalhadores e estudantes contra a ditadura.
Recorda-se aí, também, a importância que, na altura, teve a colaboração, nunca sectária, de advogados democratas de diversas correntes – comunistas, socialistas, liberais e democratas-cristãos – no desenvolvimento e legitimação popular dessa particular forma de luta contra a extrema direita franquista e na elaboração da Constituição espanhola da Democracia.
Falando hoje para esse documentário, os agora menos jovens advogados, ainda vivos, explicaram como viam então a sua função jurídica/judiciária.
Ela representava para todos, naquele contexto, uma parte importante da estratégia mais geral dos democratas para impedir a continuidade da ditadura.
Uma coisa parece certa e decorre com muita clareza de todos estes documentos literários e cinematográficos: o Direito e mesmo as leis da ditadura podem, com certos limites, ser utilizados contra ela, mas isso não muda a sua natureza.
Mais difícil, e mesmo muito preocupante, é pensar que se podem convocar os que não têm apreço pela Democracia e pelo Estado de Direito para participarem em qualquer «pacto de Justiça» que tenha, alegadamente, em vista reforçar os direitos liberdades e garantias dos cidadãos, no plano da intervenção judiciária e fora dele.
No Direito e nas leis de um país, muito mais do que nos orçamentos anuais, fica cunhado o tipo de Estado e de Democracia em que se pretende que vivamos hoje e no futuro.