O que se passa lá fora? O equilíbrio entre os benefícios do turismo e a qualidade de vida dos residentes

O que se passa lá fora? O equilíbrio entre os benefícios do turismo e a qualidade de vida dos residentes


O turismo de massas, embora impulsione economias locais, está a gerar tensões crescentes nas cidades.


O turismo global está em plena expansão em 2024, impulsionado pelo crescente desejo de conhecer novos destinos. A Organização Mundial do Turismo (OMT) prevê que o setor não só recuperará, como ultrapassará os níveis pré-pandemia em 2%. No entanto, a recuperação varia conforme a região, com algumas a crescerem rapidamente, enquanto outras apresentam uma estabilização.

Segundo o Global Tourism Statistics and Future Predictions 2024, da WP Travel, as dez cidades mais visitadas do mundo podem não ser aquelas que imaginamos. E outros dados, por exemplo, aqueles que foram apurados pelo Euromonitor International de 2023, já nos davam um lamiré sobre aquilo que poderia acontecer este ano. Assim, Istambul, na Turquia, ocupa o primeiro lugar. Com 20,2 milhões de chegadas em 2023, a cidade turca deve manter essa posição em 2024, graças à sua localização estratégica e riqueza cultural. “Istambul é uma cidade incrível, cheia de história e cultura, e é emocionante ver pessoas do mundo inteiro a apreciarem isso. Amo a energia que os turistas trazem, especialmente ao Grand Bazaar, onde tudo fica mais vivo. Mas, ao mesmo tempo, às vezes pode ser cansativo, especialmente no verão. Sinto que estamos a perder um pouco da tranquilidade local”, diz-nos Ahmet, de 47 anos, comerciante, no Messenger, que viveu toda a sua vida naquela cidade. “Quando vejo turistas a visitarem a Hagia Sophia ou a passearem pelo Topkapi, sinto um orgulho genuíno, porque estão a testemunhar a grandiosidade do nosso passado. No entanto, às vezes pode ser exaustivo. Por exemplo, o trânsito, já complicado, torna-se um pesadelo. Os turistas, muitas das vezes, perdem-se ou param no meio da rua para tirar fotos, o que se torna difícil porque estamos a tentar apenas seguir com o nosso dia. Os moradores perdem um pouco de espaço na cidade que deveria ser nossa”, afirma.

De facto, Istambul é uma cidade única, situada entre dois continentes: Europa e Ásia, com o estreito de Bósforo a separá-los. Rica em história, foi capital de três grandes impérios: Romano, Bizantino e Otomano. Hoje, é um centro vibrante de cultura, arte e comércio. A Hagia Sophia, o Palácio de Topkapi e o Grande Bazar são apenas alguns dos lugares célebres que atraem milhões de turistas. A mistura entre a modernidade e o passado torna Istambul fascinante, com mesquitas históricas a coexistirem com uma vida noturna dinâmica e centros comerciais modernos.

Londres e Paris, sempre populares, seguem de perto no ranking. A capital britânica, mesmo com uma leve queda no número de turistas em 2023, ainda é um destino essencial, enquanto Paris pode ver um aumento no fluxo de visitantes, impulsionada pela realização dos Jogos Olímpicos de Verão de 2024. “Londres sempre foi um lugar de grande atração, tanto para quem mora aqui como para quem nos visita. Temos uma cultura riquíssima, monumentos históricos e museus gratuitos. Adoro ver o entusiasmo dos turistas ao conhecerem locais icónicos como o Big Ben ou o Palácio de Buckingham e é indiscutível que o turismo impulsiona a economia local. Mas, para quem mora aqui, também há um lado difícil. Em certas épocas do ano, o centro de Londres fica insuportavelmente cheio”, começa por explicar Emily, via Instagram.

A cidade que tem uma cena cultural rica, que inclui teatros de renome em West End e eventos de moda, conseguindo manter a sua tradição ao lado da modernidade. É também um centro de diversidade cultural, com bairros como Camden e Notting Hill a oferecerem uma visão eclética da vida urbana. “O transporte público, especialmente o metro, pode ser um pesadelo: as estações centrais ficam cheias e, às vezes, é impossível andar. E parece que os preços sobem em áreas turísticas e nós, moradores, sentimos isso no bolso. Amo Londres, mas às vezes gostaria que houvesse um equilíbrio maior entre o turismo e a vida local”, sublinha a jovem de 28 anos.

Já Sophie, habitante de Paris, começa por indicar que aquela é “indiscutivelmente uma das cidades mais bonitas do mundo” e, efetivamente, declara que se sente privilegiada por viver na capital francesa. “Quando vejo turistas maravilhados com a Torre Eiffel ou impressionados com o Louvre, sinto-me orgulhosa da minha cidade. O turismo é vital para a nossa economia e há uma alegria em saber que tantas pessoas querem conhecer esta cidade. No entanto, viver aqui nem sempre é fácil”, destaca a jovem de 25 anos.

“Em áreas como Montmartre, a quantidade de visitantes é tão grande que às vezes sinto que estamos a sufocar. Adoro caminhar por Paris, mas em lugares como o Marais ou perto da Notre Dame, é impossível fazer isso sem ter de ‘fugir’. Além disso, os pequenos comércios tradicionais têm sido substituídos por lojas voltadas apenas para turistas, o que me preocupa, porque perdemos um pouco da alma parisiense”, evidencia.

A gastronomia parisiense, a arte e a moda são outras grandes atrações. Paris também é um centro literário e artístico, com bairros como Montmartre e o Quartier Latin a servirem de atração para artistas e escritores há séculos. Além disso, o Rio Sena oferece passeios relaxantes e vistas deslumbrantes da arquitetura clássica e moderna da cidade.

O Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, também se destaca. A cidade tem investido fortemente em infraestrutura turística, consolidando-se como um importante hub de trânsito e destino internacional. “O Dubai é uma cidade em constante transformação e grande parte desse crescimento deve-se ao turismo. O que a cidade conseguiu fazer em tão pouco tempo é incrível e é fascinante ver visitantes de todo o mundo a maravilharem-se com o Burj Khalifa, as ilhas artificiais e os shoppings gigantes”, aponta Omar sobre a cidade que combina a tradição árabe com a modernidade ocidental de forma única, atraindo turistas que procuram experiências luxuosas e extravagantes.

“O turismo traz empregos e desenvolvimento e isso é algo que todos nós apreciamos. Mas às vezes… Sinto que a cidade está a tornar-se muito comercial. O ritmo de vida aqui é extremamente rápido e parece que estamos sempre a tentar acompanhar o fluxo de turistas e novas construções”, observa o proprietário de uma cadeia de lojas, de 52 anos, clarificando que tal pode ser cansativo. “Além disso, embora a modernidade seja algo que nos define, preocupa-me que a verdadeira cultura local do Dubai, as tradições dos emiradenses, acabem por se perder”, partilha.

Antalya, outra cidade turca, também aparece na lista, graças ao seu apelo como destino turístico mediterrâneo. Selin, habitante desta cidade, de 38 anos, que conhecemos graças a Ahmet, diz:_“É um lugar paradisíaco. Temos praias belíssimas, montanhas e uma história fascinante que atrai turistas de todas as partes. Trabalho com turismo, então sei o quanto ele é importante para a nossa economia. Ver turistas animados com as praias e a explorarem o centro histórico de Kaleiçi traz-me muita alegria”, afirma a jovem que já trabalhou como guia turística durante alguns anos e gosta profundamente da cidade que constitui o principal destino turístico da chamada ‘Riviera Turca’, oferecendo tanto resorts de luxo quanto locais históricos como as ruínas de Termessos e Aspendos.

“O problema é que viver numa cidade tão turística tem os seus desafios. No verão, fica tão cheia que os moradores acabam por evitar certos lugares. As praias, por exemplo, ficam cheias, e é difícil encontrar um espaço tranquilo para relaxar. Por outro lado, os preços sobem muito, especialmente nos restaurantes e nas lojas. É claro que quero que os turistas continuem a visitar-nos, mas gostaria que houvesse mais respeito pelo espaço e pela vida quotidiana de quem mora aqui o ano inteiro”, salienta.

No ranking global, cidades asiáticas como Hong Kong, Bangkok e Tóquio também mantêm a sua popularidade. Hong Kong, especialmente, pode ver uma recuperação significativa com a flexibilização das restrições de viagem, enquanto Tóquio beneficia da reabertura das fronteiras do Japão. A capital tailandesa, Bangkok, deve continuar a crescer, com o apoio de fortes campanhas de promoção turística.

“Adoro ver turistas a provarem a nossa gastronomia, a passearem pelos mercados noturnos ou a admirarem a vista do Victoria Peak. Temos orgulho de ser uma cidade global e o turismo impulsiona a nossa economia. No entanto, para nós, moradores, o fluxo constante de turistas pode ser desgastante”, explica Wei, de 57 anos, professor do Ensino Secundário em Hong Kong e que conhecemos através de um grupo do Facebook.

“Hong Kong já é uma cidade com uma elevada densidade populacional e, com tantos visitantes, os espaços públicos e o transporte ficam ainda mais cheios. E há também o aumento do custo de vida, especialmente no setor imobiliário”, lamenta. “Comprar uma casa aqui está fora de questão para muitos de nós, em parte por causa da pressão do turismo e dos investidores estrangeiros. Infelizmente, sinto que a cidade está a perder o seu carácter local em troca de uma imagem globalizada”.

Somchai, morador de Bangkok, de 62 anos, conta que a cidade “tem tanto a oferecer e é ótimo que o mundo esteja a perceber isso”, pois os “lugares como o Grand Palace e o Wat Arun são jóias culturais”. “Mas o turismo em massa também traz problemas. O trânsito é horrível e, muitas das áreas, ficam sobrecarregadas, com infraestruturas que não conseguem acompanhar o crescimento do turismo”, diz o homem que trabalha numa loja de souvenirs. “Às vezes, parece que estamos a perder a essência da nossa cidade”.

Yuki, moradora de Tóquio, de 44 anos, realça que aquela “é uma cidade fascinante”. “Fico feliz por ver que tantas pessoas vêm descobrir a nossa cultura. É muito bom ver turistas no Shibuya Crossing ou no Templo Senso-ji. Mas, com tanto movimento, o transporte público às vezes fica muito congestionado. E eu uso-o todos os dias, é cansativo”, conta “Também sinto que alguns bairros tradicionais estão a transformar-se demasiado rápido para acomodar a procura turística e isso entristece-me”.

No continente americano, Nova Iorque e Cancún figuram entre as cidades mais visitadas. A ‘Big Apple’ continua a atrair turistas graças à sua riqueza cultural e ao seu status como centro financeiro global, enquanto Cancún continua a ser uma das praias mais procuradas no México. “Nova Iorque é um lugar incrível e entendo os motivos pelos quais tantas pessoas querem vir aqui. Broadway, a Estátua da Liberdade… Tudo isso é impressionante”, narra Jessica. “O turismo, definitivamente, ajuda a nossa economia, mas viver aqui pode ser um desafio, especialmente com a quantidade de turistas nas ruas. Lugares como Times Square estão sempre a abarrotar e sinto que a cidade nunca tem um momento de descanso”, queixa-se.

“Cancún tem praias paradisíacas e o turismo é a nossa principal fonte de rendimento. Muitos de nós, como é o meu caso, trabalhamos diretamente com os turistas, então é bom para a economia local”, começa por dizer o barman de um hotel que preferiu não identificar-se. “Mas o turismo em massa também traz alguns problemas, como o aumento no custo de vida e a pressão sobre os nossos recursos naturais. Às vezes, sinto que estamos a perder um pouco da nossa identidade local. Só se fala em hotéis, resorts, lojas, desenvolvimento e quem é daqui fica esquecido…”, lastima.

Entre a discórdia e as manifestações

Nos últimos anos, a Europa tem assistido a uma onda crescente de protestos contra o turismo massivo, com críticas ao impacto que este fenómeno tem nas cidades. Após a interrupção causada pela pandemia, o turismo voltou em força, impulsionado por novas formas baratas de viajar. No entanto, esse crescimento descontrolado trouxe consigo consequências negativas para os habitantes das cidades mais visitadas: aumentos nos preços das rendas, gentrificação e a expulsão de residentes dos centros urbanos.

De Atenas a Barcelona, passando por Veneza e pelo Porto, os protestos refletem o descontentamento dos moradores, que exigem maior regulação do setor e medidas que protejam o direito à habitação e o bem-estar local. A expansão de alojamentos turísticos tem sido alvo de críticas, com muitos a argumentarem que essas práticas drenam o mercado imobiliário, beneficiando os turistas à custa dos residentes.

Em Barcelona, os protestos têm sido especialmente intensos, com manifestantes a exigir a eliminação de alojamentos locais até 2028 e a recuperação de imóveis para os habitantes. Na Grécia, onde o turismo também atingiu níveis recorde, os manifestantes pedem ao governo que cumpra promessas de regulação do setor. Veneza, à sua vez, já experimentou medidas como a cobrança de taxas aos visitantes, mas os residentes temem que a cidade se transforme num “parque temático”.

O índice de irritação proposto por George Doxey em 1975 ajuda a explicar a evolução do descontentamento, que começa com a euforia pelo crescimento do turismo, passa pela apatia, evolui para irritação e culmina em antagonismo. As cidades europeias parecem estar agora entre os últimos dois estágios, com um número crescente de residentes a exigir soluções urgentes. Para os especialistas, a falta de políticas adequadas e de gestão territorial eficiente tem agravado o conflito entre turistas e residentes, com o futuro das cidades pendendo entre manter a sua autenticidade ou ceder à “turistificação”.

Em Portugal, a situação não é diferente. Sintra e Porto já enfrentam uma forte oposição ao turismo excessivo, com faixas e manifestações a reivindicar medidas concretas para impedir que essas cidades se transformem em espaços comerciais, sem espaço para quem as habita.

Enquanto o debate continua, um ponto parece claro: o desafio para as cidades será encontrar um equilíbrio entre os benefícios económicos do turismo e a qualidade de vida dos seus residentes.