A situação política resultante das últimas eleições não pareceria propícia ao debate sobre a reforma do sistema eleitoral. A fragilidade objectiva do apoio eleitoral aos maiores partidos e coligações (AD e PS) e a consequente incerteza da legislatura não favorece a tranquilidade política indispensável a uma reforma de fundo daquela profundidade e importância. E, todavia, os resultados das eleições das legislativas de Março voltaram a confirmar os sinais das eleições anteriores quanto ao imperativo dessa reforma: um imperativo democrático e nacional.
É talvez por isto que, apesar do clima partidocrático adverso, o Observador publicou quatro artigos de opinião com diferentes perspectivas sobre a matéria, todos no mês de Julho: de Paulo Trigo Pereira (apresentando o Manifesto que lidera, em que também participo), Diogo Ribeiro Santos (propondo nova abordagem à ideia do círculo de compensação), Lourenço Teotónio Pereira (avançando com uma ideia nova, a do “voto gradativo”) e Luís Morais Sarmento, Diogo Peres e Paulo Guimarães (com uma proposta de sistema eleitoral). Ou seja, o tema continua a suscitar intensa curiosidade e novo interesse, o que, aliás, bem se compreende. Só os directórios dos principais partidos (e seus seguidores) fingem que não o entendem.
Outro sinal da premência desta reforma política está em duas ideias que ganham cada vez mais adesão na opinião pública e que são efeitos indirectos da degradação do sistema eleitoral actual. São a ideia da redução acentuada do número de deputados e a da limitação dos mandatos.
Quanto ao número de deputados, não é o problema principal com que nos defrontamos. E, se a função e o desempenho dos deputados tivessem prestígio, provavelmente ninguém se lembraria de defender a redução. Aliás, objectivamente, quem fizer a comparação entre a Assembleia da República e os outros Parlamentos europeus chegará rapidamente à conclusão de que não temos deputados a mais face a outros países da nossa dimensão. Então, por que razão esta ideia cresce tanto entre nós? São os cidadãos eleitores a pensar: “já que os deputados não nos representam, mas só aos chefes dos partidos, então que sejam menos e não saiam tão caros.” A ideia de reduzir drasticamente os deputados é consequência da sua funcionalização.
Quanto à limitação dos mandatos, é o mesmo problema. Se os deputados fossem vistos como mandatários dos seus eleitores e estivessem sujeitos a prestação de contas e efectivo escrutínio, ninguém quereria fazer rodar um deputado que estivesse a fazer bom trabalho. Países com sistemas eleitorais com peso efectivo dos eleitores mostram, aliás, a vantagem de carreiras parlamentares longas, bem escrutinadas a cada eleição, grandes referências de prestígio e de experiência. Mas, com deputados funcionalizados e vistos como meramente dependentes dos seus chefes, os cidadãos eleitores pensam: “já que os deputados não nos representam, mas só aos chefes dos partidos, ao menos que rodem e venham outros.”
Assim, é oportuno reafirmar alguns pontos essenciais da reforma eleitoral que defendo.
Primeiro, o respeito escrupuloso da Constituição e, em especial, do artigo 149.º, tal como resultou da revisão constitucional de 2007. Temos de ter a consciência absolutamente clara de que, se os maiores partidos têm bloqueado a reforma eleitoral conforme à Constituição, em vez de a servirem, mais o fariam se pretendêssemos sair do quadro constitucional. Se sairmos deste quadro, entramos de imediato no vazio absoluto, da conversa inconsequente, das mil e uma ideias para nada. Além disso, a experiência mostra que, se favorecêssemos uma nova revisão constitucional, os maiores partidos iriam provavelmente aproveitá-la para trancarem de novo o quadro constitucional, fechando todas as portas abertas em 1997. A reforma eleitoral necessária não se faz por falta de Constituição, mas por falta de vontade política dos directórios dos maiores partidos que querem manter um sistema que possam manejar à vontade.
Segundo, não nos devemos preocupar tantos com a questão dos chamados “votos desperdiçados”, ultimamente muito abordada. É uma questão que só interessa aos partidos ou coligações, não tanto à relação deputado/eleitor que é a questão-chave da democracia e a fragilidade maior do nosso sistema. Aliás, se não resolvermos este problema, o outro tem pouca ou nenhuma relevância. Façamo-nos a pergunta: para que me interessa que o meu voto dê para eleger mais um deputado, se ele vai valer tão pouco quanto todos os outros? E a questão dos “votos desperdiçados” está a ser muito empolada. Em todas as eleições há votos desperdiçados, no sentido de não elegerem ninguém. A democracia é assim: há uns que ganham e outros que perdem. E é matematicamente impossível que, numa eleição, mesmo proporcional, todos os votos concorram para a eleição de alguém.
Terceiro, devemos ter medo do círculo nacional único. Os círculos eleitorais distritais ou regionais são essenciais à descentralização das fontes do poder e à representação da cidadania no território em que habita, vive e trabalha. Acabar com estes círculos (sobretudo, se não houver também círculos uninominais) destruiria por completo a proximidade com os eleitores. Seria um tiro de canhão na pouca representatividade democrática que ainda existe.
Quarto, não podemos alimentar o papão da “complexidade”. O sistema de representação proporcional personalizada para que aponta o artigo 149.º da Constituição não tem complexidade nenhuma, como qualquer eleitor alemão ou neozelandês explicará com facilidade. Nós também, assim que o adoptemos. É um sistema em que é a votação plurinominal nos círculos distritais/regionais que dita as cores da composição parlamentar, tal como hoje acontece, mas em que as eleições uninominais dão mais proximidade e legitimidade às bancadas e o círculo nacional ajusta as contas finais. “Complexo” é o sistema actual em que nós votamos, mas não nos sentimos representados quanto à relação com os deputados.
Se queremos a reforma eleitoral, não nos dispersemos para fora do quadro constitucional. Isso será a melhor forma de manter tudo na mesma.