A Ucrânia saiu das trevas dos últimos meses e lançou uma inesperada, e bem sucedida, ação militar que levou a guerra para dentro da Rússia e mostrou as fragilidades do regime de Putin. Pela primeira vez, o exército ucraniano entrou em território russo e conquistou 74 localidades naquilo que Kiev já designou, com algum humor à mistura, como a ‘Operação Militar Especial da Ucrânia na Rússia’, numa analogia com o nome da operação lançada por Moscovo em fevereiro de 2022.
Esta ação foi planeada ao longo de meses no maior secretismo e foi também a de maior envergadura desde que a Ucrânia foi invadida pela Rússia. O ataque teve tanto de arriscado como de surpreendente. Foi esse efeito surpresa que permitiu a entrada do exército ucraniano na região de Kursk com uma facilidade desconcertante, ficando bem patente a vulnerabilidade dos guardas fronteiriços e dos membros da polícia secreta russa que não ofereceram grande resistência, talvez por subestimaram os ucranianos. Na verdade, as atenções dos responsáveis militares russos sempre estiveram centradas na região do Donbass e não numa zona que, deste o início do conflito, foi das mais calmas.
A conquista de território russo significa também que a Ucrânia recuperou militarmente dos fracassos dos últimos meses. Volodymyr Zelensky justificou a ação militar com «a necessidade de a Rússia ser forçada a chegar à paz», adiantando que «é inteiramente justificado destruir os terroristas russos onde estejam e de onde lancem ataques. A Rússia levou a guerra a outro país, agora a guerra regressa a casa. Provámos que em qualquer situação somos capazes de alcançar os nossos objetivos e somos também capazes de proteger nossos interesses e nossa independência», disse o Presidente da Ucrânia no primeiro discurso após o início da operação.
Novamente Kursk
O destino tem coisas destas. Há 24 anos, o submarino nuclear russo Kursk afundou-se quando realizava exercícios no Mar de Barents. Vladimir Putin evitou a todo o custo a ajuda internacional e os 118 tripulantes morreram, foi a primeira grande mentira do líder russo. Agora, é na região de Kursk que Putin sofre uma humilhante derrota militar com a conquista de 1.000 quilómetros quadrados pelas tropas ucranianas, e por aquilo que isso representa: desde a Operação Barbarossa, levada a cabo pela Alemanha nazi durante a Segunda Guerra Mundial, que não havia tropas estrangeiras em território russo.
Os combates prosseguem na linha da frente, nomeadamente nas zonas urbanas, com o comando militar ucraniano a garantir que, nas últimas 24 horas, foram conquistados mais 40 quilómetros quadrados. Nos últimos dois dias, a ofensiva estendeu-se à região vizinha de Belgorod com um forte ataque durante o dia de ontem com drones e mísseis, tendo como alvos três bases aéreas russas, onde se registaram violentas explosões. «Apesar dos difíceis e intensos combates, as nossas tropas continuam a avançar na região de Kursk», afirmou o Presidente Zelenski. O governador dessa região, Vyacheslav Gladkov, confirmou as palavras do Presidente ucraniano ao declarar o estado de emergência em toda a região devido aos ataques contínuos das tropas ucranianas.
Com a ofensiva ucraniana a aumentar de dimensão, Kiev anunciou a abertura de corredores humanitários junto à fronteira russa para que os civis possam abandonar a região com o apoio de organizações humanitárias. «Instruímos o ministro de Assuntos Internos, bem como outros funcionários do Governo e o Serviço de Segurança da Ucrânia para preparar um plano humanitário para a área de operação», escreveu o Presidente da Ucrânia na rede social X
Afronta a Putin
As imagens de soldados a hastearem a bandeira ucraniana em edifícios administrativos e as centenas de prisioneiros russos são uma humilhação militar para o Kremlin, que não contava com a resiliência militar de um adversário que julgava enfraquecido.
As próximas semanas vão ser determinantes para o futuro da guerra. A Ucrânia vai ter de ser muito forte para aguentar a reação russa para recuperar o território perdido. Segundo Dmytro Lykhovy, porta-voz do exército ucraniano, a Rússia está a deslocar tropas do sul da Ucrânia, nomeadamente das regiões de Zaporijia e Kherson, para o seu próprio território com o objetivo de travar a incursão das forças de Kiev.
O esforço militar da Ucrânia na última semana pode marcar uma viragem no curso da guerra e vai ser determinante para alcançar alguns objetivos estratégicos. A conquista de localidades na região de Kursk vem dar mais força a Zelenski na altura em que começarem as negociações para um acordo de paz, devem acontecer em 2025, e que vai passar, necessariamente, pela cedência de território de ambos os lados.
Em menos de um ano, é a segunda vez que Putin vê o seu domínio ameaçado. Em junho de 2023, Yevgeny Prigozhin, líder do grupo mercenário Wagner, iniciou uma marcha em direção a Moscovo e, logo aí, percebeu-se que a máquina de guerra russa também tinha falhas. Até agora, as forças armadas ucranianas limitavam-se a atacar regularmente alvos ligados à máquina de guerra com drones e mísseis, mas nunca tinham entrado em território da Mãe Rússia.
Apesar do efeito negativo deste ataque, Vladimir Putin não deu importância ao avanço ucraniano para não aumentar o impacto que isso teve na Rússia e afirmou que «o inimigo receberá uma resposta digna e vai ser rapidamente eliminado. Todos os nossos objetivos serão alcançados». O Presidente russo aproveitou para responsabilizar a Ucrânia sobre o impasse nas negociações de paz: «Torna-se claro porque é que o regime de Kiev recusou as nossas propostas para o regresso a um plano de acordo pacífico, bem como as propostas de mediadores neutros. Parece que o inimigo, com a ajuda dos seus chefes ocidentais, está a cumprir a sua vontade, e que o Ocidente está a combater contra nós com as mãos dos ucranianos. O inimigo está a melhorar a sua posição negocial no futuro», disse Putin que, assim, assume a importância e dimensão da ação militar levada a cabo pela Ucrânia.
Os aliados da Ucrânia mostraram-se surpresos com a ação militar e fizeram um apelo a Zelensky para que não fossem atacados alvos civis. O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que «a ofensiva ucraniana na Rússia criou um verdadeiro dilema a Putin e que a solução é parar com a guerra». Já o porta-voz adjunto do Departamento de Estado, Vedant Patel, garantiu que os Estados Unidos não estiveram implicados na planificação da operação na região de Kursk. «Deixámos aos militares ucranianos o seu desejo de falar. O nosso objetivo é apoiar a capacidade da Ucrânia de se defender», explicou Patel.
O primeiro-ministro da Finlândia, Petteri Orpo, e o seu homólogo estónio, Kristen Michal, defenderam que a Ucrânia tem o direito a defender-se de agressão russa e a lançar uma ofensiva militar em Kursk. «A Rússia ataca todos os dias a população ucraniana, as suas cidades, escolas e infraestruturas, por isso tem direito à legítima defesa», considerou Orpo, que afirmou que o dever dos países europeus e da NATO é apoiar a Ucrânia durante o tempo que for necessário, pois é a única maneira de parar o Presidente russo.