Berlim, 1936. Das ruínas de Olímpia à grande operação de charme nazi

Berlim, 1936. Das ruínas de Olímpia à grande operação de charme nazi


“Temos de ser mais encantadores do que os parisienses, mais descontraídos que os vienenses”, apelava o jornal de Goebbels. Hitler viu nos Jogos Olímpicos de 1936 uma oportunidade de ouro para mostrar ao mundo a face mais sedutora do seu regime. E não a desperdiçou.


A história dos Jogos Olímpicos está recheada de proezas épicas, de provas emocionantes e de grandes encenações. Mas nenhuma edição terá sido tão rica nestes ingredientes quanto a dos Jogos de Berlim em 1936. Ao que parece, inicialmente Adolf Hitler não terá ficado muito agradado com a ideia de ser o anfitrião do evento. O que o ditador intimamente ambicionava era expandir o território do Reich, apoderar-se de matérias-primas e subjugar quem quer que lhe fizesse frente. Receber na sua capital atletas vindos dos quatro cantos do mundo, muitos dos quais de raças pelas quais ele sentia pouco mais do que desprezo, não era algo que estivesse nos seus planos.

Mas os objetivos políticos tinham de estar acima das preferências pessoais. “Quando foi lançada uma campanha de boicote, em particular nos Estados Unidos, por causa do tratamento dos judeus no Terceiro Reich”, relata o historiador Richard J. Evans n’O Terceiro Reich no Poder, “Hitler compreendeu que a transferência dos Jogos para outro país seria extremamente prejudicial, e que a organização do evento na Alemanha oferecia uma oportunidade imperdível para influenciar favoravelmente a opinião pública internacional”. Essa oportunidade não seria desperdiçada.

O jornal de Goebbels, o maestro por trás da enorme máquina de propaganda e manipulação nazi, incitava: “Temos de ser mais encantadores do que os parisienses, mais descontraídos do que os vienenses, mais animados do que os romanos, mais cosmopolitas do que os londrinos e mais práticos do que os nova-iorquinos”. Os desumanos nacional-socialistas também podiam ser mestres-de-cerimónias encantadores. Bastava usarem todo o seu poder de dissimulação.

Os alemães não pouparam nem nos esforços nem nos gastos. Hitler mandou construir um complexo desportivo que incluía um estádio com capacidade para 110 mil espetadores, a que não faltava uma tribuna em estilo clássico para o führer e os seus convidados. Ao contrário de muitos outros projetos megalómanos de Hitler, o Olympiastadium continua de pé. Foi alvo de uma remodelação profunda que ficou concluída em 2004 e recebeu, no passado dia 14 de julho, a final do campeonato da Europa de Futebol entre as seleções espanhola e inglesa.

“Os Jogos foram transmitidos para o mundo inteiro pela rádio e, pela primeira vez, foram filmados para a televisão, embora de forma experimental porque quase ninguém tinha uma televisão”, continua Evans. O discurso de Hitler protagonizou “a primeira emissão televisiva suficientemente forte para chegar além da Terra”. “A capital encheu-se de bandeiras nazis e olímpicas, e Richard Strauss, na cerimónia inaugural, dirigiu um coro de 3000 cantores na interpretação da ‘Canção de Horst Wessel’ e do seu ‘Hino Olímpico’. A chama olímpica foi acendida, Hitler declarou os Jogos inaugurados e 5000 atletas iniciaram as provas”. A ‘Canção de Horst Wessel’ era nada mais nada menos do que o hino nazi, cujo refrão dizia: “Milhões olham para a suástica cheios de esperança, o dia da liberdade e do pão está a nascer”.

Entre os membros da comitiva portuguesa que assistiram à cerimónia inaugural encontrava-se um médico de Belém que tinha sido ferido com gás na Flandres durante a Grande Guerra e distinguido com uma Cruz de Guerra. Virgílio Paula fora também um pioneiro do futebol em Portugal, dizendo-se que marcara o golo que dera ao Benfica o primeiro troféu do seu palmarés, frente ao Carcavelos. Em 1919 fundou, com outros “dissidentes” encarnados, o clube Os Belenenses, num andar por cima dos Pastéis de Belém, e foi dirigente da Federação Portuguesa de Futebol, qualidade em que se deslocou a Berlim para assistir aos Jogos Olímpicos. Pelos vistos, não ficara ressentido com os alemães. Em Lisboa, deixara uma das suas três filhas muito desgostosa por não ter podido acompanhá-lo e ver em carne e osso o carismático Adolf Hitler.

Era natural que muitos se deixassem enganar. Embora o regime mostrasse desde cedo ao que vinha, naquele ano de 1936 as perseguições aos judeus tinham sido suspensas. Durante alguns meses, até o infame semanário antissemita Der Stürmer foi retirado das bancas da capital, para não causar má impressão. A operação de maquilhagem resultou em cheio.

Apesar da desconfiança inicial, a Adolf Hitler terão certamente agradado as ressonâncias clássicas dos Jogos, que haviam surgido mais de 2500 anos antes em Olímpia, no Peloponeso. Tanto na Grécia antiga como na Alemanha nazi, o exercício físico constituía uma parte importante da formação dos jovens, e em ambas se valorizavam as virtudes viris. Curiosamente, tinha sido uma campanha arqueológica conduzida por alemães a revelar as ruínas do templo de Olímpia, entre 1875 e 1881. Esses achados espicaçaram a imaginação do barão Pierre de Coubertin, e levaram-no a criar a versão moderna dos Jogos, cuja primeira edição se realizou em Atenas em 1896. Em sentido inverso, a realização dos Jogos de verão em Berlim em 1936 estimulou o interesse dos alemães pelas origens da competição e levou-os a financiar uma segunda campanha em 1937.

As escavações em Olímpia revelaram muita informação sobre a origem dos Jogos feitos em honra dos deuses helénicos. A primeira edição ter-se-á realizado em 776 a.C. e consistira essencialmente de vários tipos de corridas. De 708 a.C. datam os primeiros registos do salto em comprimento, do lançamento do disco e do dardo e da luta. Em 608 a.C., as coisas ficaram mais feias e mais sangrentas com a chegada do pugilismo, que já não implicava apenas derrubar o adversário, mas tentar atingi-lo com socos e, possivelmente, pontapés.

Mas não valia tudo. Fora das quatro linhas do ringue reinava a harmonia. Mesmo que as respetivas cidades estivessem em guerra, os atletas encontravam-se ao abrigo de uma trégua olímpica que lhes permitia participar sem constrangimentos.

Quanto ao führer, “ficou encantado com o sucesso dos Jogos e ordenou a Speer que projetasse um estádio muitas vezes maior”, nota Evans. “Hitler aceitou que as Olimpíadas de 1940 se realizassem no Japão, conforme o planeado, mas disse que daí para a frente os Jogos seriam permanentemente realizados em Berlim.” Mas apenas com atletas brancos.

Como é sabido, os Jogos não se realizaram em 1940 nem em 1944, justamente por causa da Guerra iniciada pela Alemanha (como já não se haviam realizado em 1916, pelo mesmo motivo). Quatro anos depois de a chama olímpica ser acesa em Berlim, era a Europa toda que estava a arder. O estádio de Speer nunca chegou a ser construído e os atletas olímpicos continuaram a ser de todas nações e de todas as cores. Em 2009, as mesmas bancadas que em 1936 tinham assistido às vitórias de Jesse Owens, voltaram a aclamar um atleta negro, quando Usain Bolt correu os 100 metros em 9,58 segundos, tornando-se assim o homem mais rápido de todos os tempos.