A gralha quadrúpede


Lembrei-me de Pessoa, não há dia que não me lembre de Pessoa, só de ti é que me lembro mais vezes do que de Pessoa.


Quando a lua começou a crescer para lá do rio e dos arrozais que bordejam o rio não fui capaz de adivinhar que se tornaria enorme e amarela como um queijo da serra de repente dependurado dos cabos do universo. Um fascínio qualquer que não sei explicar fez-me ficar de olhar preso naquele círculo de luz e ao seu reflexo nas águas do Sado que corriam ao contrário por causa da maré. Sim, é possível que a grande tristeza dos rios seja a de não conseguirem fixar a tua imagem. Lembrei-me de Pessoa, não há dia que não me lembre de Pessoa, só de ti é que me lembro mais vezes do que de Pessoa: «Ao longe, ao luar/No rio uma vela/Serena a passar/Que é que me revela?/Não sei, mas meu ser/Tornou-se-me estranho/E eu sonho sem ver/Os sonhos que tenho/Que angústia me enlaça?/Que amor não se explica?/É a vela que passa/Na noite que fica». Apesar de todo o luzeiro, mantive-me cinzento por dentro. Saudade? Sim uma grande saudade dessas noites junto ao mar que não voltam nunca mais. Uma saudade estúpida porque impossível. Uma saudade insana porque já nenhum de nós existe. E a lua, no alto, caminhando devegar, ou a Terra por ela. Os sons da noite da minha varanda neste Verão que demorou tanto a começar: os grilos que usam as asas para cantar, a rouquidão das rãs, um cão ao longe, uma coruja sobre os telhados que ficam para os lados da Igreja de Santiago. Uma brisa quente que vem do sul, o marejar de pequenas ondas contra o muro da marginal, súbitas vozes de conversas que não entendo, uma sensação súbita de que o mundo parou pela força da atracção dos seus opostos. Queria discutir com a vida, mas não vale a pena porque ela não me responde há muito tempo. E, no entanto, continuou a ter perguntas por responder. Limito-me a olhar o céu e repetir a frase de Daniil Kharms – «Era uma vez uma gralha quadrúpede. Na verdade tinha cinco patas, mas não vale apena insistir nisso». Faz sentido, não faz? O luar que o diga.

A gralha quadrúpede


Lembrei-me de Pessoa, não há dia que não me lembre de Pessoa, só de ti é que me lembro mais vezes do que de Pessoa.


Quando a lua começou a crescer para lá do rio e dos arrozais que bordejam o rio não fui capaz de adivinhar que se tornaria enorme e amarela como um queijo da serra de repente dependurado dos cabos do universo. Um fascínio qualquer que não sei explicar fez-me ficar de olhar preso naquele círculo de luz e ao seu reflexo nas águas do Sado que corriam ao contrário por causa da maré. Sim, é possível que a grande tristeza dos rios seja a de não conseguirem fixar a tua imagem. Lembrei-me de Pessoa, não há dia que não me lembre de Pessoa, só de ti é que me lembro mais vezes do que de Pessoa: «Ao longe, ao luar/No rio uma vela/Serena a passar/Que é que me revela?/Não sei, mas meu ser/Tornou-se-me estranho/E eu sonho sem ver/Os sonhos que tenho/Que angústia me enlaça?/Que amor não se explica?/É a vela que passa/Na noite que fica». Apesar de todo o luzeiro, mantive-me cinzento por dentro. Saudade? Sim uma grande saudade dessas noites junto ao mar que não voltam nunca mais. Uma saudade estúpida porque impossível. Uma saudade insana porque já nenhum de nós existe. E a lua, no alto, caminhando devegar, ou a Terra por ela. Os sons da noite da minha varanda neste Verão que demorou tanto a começar: os grilos que usam as asas para cantar, a rouquidão das rãs, um cão ao longe, uma coruja sobre os telhados que ficam para os lados da Igreja de Santiago. Uma brisa quente que vem do sul, o marejar de pequenas ondas contra o muro da marginal, súbitas vozes de conversas que não entendo, uma sensação súbita de que o mundo parou pela força da atracção dos seus opostos. Queria discutir com a vida, mas não vale a pena porque ela não me responde há muito tempo. E, no entanto, continuou a ter perguntas por responder. Limito-me a olhar o céu e repetir a frase de Daniil Kharms – «Era uma vez uma gralha quadrúpede. Na verdade tinha cinco patas, mas não vale apena insistir nisso». Faz sentido, não faz? O luar que o diga.