MUNIQUE – Falava de Paris, esse poema de Manuel Alegre, em O Canto e as Armas: «Fecha os teus olhos que me fazem mal./Que por vê-los me nasce aquela mágoa/Feita de sal e mar que não é água/senão a dor azul de Portugal./Que por vêlos as pérolas de sal/dos teus olhos são lágrimas que provo/que por vê-los eu vi chorar o meu povo/as lágrimas azuis de Portugal./Fecha os teus olhos que em Paris não cabe/todo o luar que tem essa tristeza/que nos teus olhos voa e não é ave/nem vento ou flor. Só lágrimas de sal./Que são frutos da terra portuguesa/teus olhos: lágrimas de Portugal». Paris onde, numa noite quente de Julho, por uma vez sem exemplo, os deuses do futebol olharam para nós e deixaram cair lá do céu aos trambolhões um pingo de felicidade no pontapé mágico de um Éder que, apenas dias antes, era motivo de troça por parte de quase todos os adeptos portugueses. No jogo dos ingleses, é a França, a dor azul de Portugal. E também foi a Grécia, no dia 4 de Julho de 2004. Os milagres não se repetem. Em Frankfurt, voltámos a ser atirados pela borda fora de um Europeu pela inevitável França. Saímos de cabeça erguida, mas não deixámos saudades. Ninguém mais falou de Portugal na Alemanha que não os portugueses. Somos dispensáveis. O único indispensável é_Ronaldo, nem que seja para que os jornalistas que ainda aqui estão possam dizer mal dele. Os outros são tratados com um encolher de ombros.
Tenho dificuldade em aceitar o histerismo que toma conta da nossa imprensa, e se estende como fogo em seara seca num dia de sol pelos nossos adeptos, de cada vez que vamos para a fase final de um Campeonato da Europa ou do Mundo. Com um descaramento divino, digno do Eça, pomo-nos em bicos dos pés e colocamo-nos na restrita lista de favoritos. Porquê?_Não sei, é um fenómeno que não entendo nem consigo explicar. Igualamo-nos à Alemanha, à França, à Espanha ou à Itália, desprezamos os que, como nós, ganharam um Europeu, como a Holanda (que por seu lado tem três finais de Mundiais), a Checoslováquia (que esteve em duas) ou a Dinamarca, por exemplo, porque sentimos incompreensivelmente que é fácil passar-lhes por cima só porque sim. Tecemos textos laudatórios a jogadores de categoria discutível que nunca ganharam nada na vida, acreditamos mais uma vez em Ronaldo e na sua dimensão universal que transportamos para uma seleção que sem ele não te qualquer dimensão e, depois da queda, vamos com as adagas afiadas em busca de culpados como se a culpa não fosse coletiva e não houvesse que entendê-la como um acumular de fragilidades individuais, tão evidentes, valha-nos Deus, tão claras e límpidas como os olhos da Michelle Pfeiffer.
Portugal regressou a casa sem brilho, sem glória e sem desculpas. Apresentou um futebol redondinho, sem arestas, que afaga os adversários mas não os magoa. Ganhámos dois jogos em cinco, um de aflitos, ou outro com uma ajuda amiga do adversário turco. Depois, frente à Geórgia, naquele momento de todos os suplentes, frente à Eslovénia e frente à França não fomos capazes de um golinho sequer para amostra. A pergunta tem de ser feita: que estávamos aqui a fazer? A perder o nosso tempo e o dos espectadores que vão aos estádios à procura de espetáculos que os mantenham presos às cadeira e não a bocejos de passes e repasses sem objetivos visíveis que não seja o de ficar com a bola porque tendo-a o opositor não a tem e não pode, por isso, fazer-nos mal. A posse de bola de Portugal passou a ser um método de defesa e não uma alavanca para o ataque. Pobre filosofia do medo.
A maior falácia do futebol português
Ignorar o passado pode justificar-se por excessos de juventude, infelizmente demasiado comparada ao desconhecimento. Convencionou-se, vá lá perceber-se quando e onde, chamar a esta a melhor geração do futebol português. É uma opinião, não de todo respeitável porque se confunde com insulto a tantos jogadores que vestiram a camisola dos cinco escudos azuis. Mas enfim, é opinião, embora nunca a visse decentemente explicada por quem quer que seja. A tida como melhor geração do futebol português teve como melhor central um jogador com 41 anos. Nenhum dos outros possui, se o jogo das comparações faz sentido, a categoria de Ricardo Carvalho, de Jorge_Andrade, de Jorge Costa, de_Fernando Couto, ou se quisermos ir um pouco mais atrás, de Humberto Coelho. Já nem me atrevo a falar de_Germano ou de Alexandre_Baptista. Não há, na melhor geração do futebol, um jogador com a noção do campo como a de Rui Costa, ou antes dele António_Oliveira e João Alves, não possui um ponta-de-lança que consiga substituir decentemente Cristiano Ronaldo, agora que ele se fixou nessa função, não há Pauleta nem Nuno Gomes nem Postiga, não há Jordão nem Nené nem Fernando Gomes. Luís Figo, nesta equipa, seria um luxo indescritível, e Simão era melhor do que qualquer dos pontas de que dispomos. Falar da arte maravilhosa de Chalana e ver Conceição jogar no seu lugar pode ser risível. Saudades e Quaresma! Até que ponto queremos ser cegos e não perceber que sempre que Roberto Martínez fez uma substituição Portugal piorou e dou de barato os três últimos minutos histéricos frente à Chéquia porque soluções de três minutos (os que entraram quando obrigados a jogar mais tempo foram inconsequente e irritantemente individualistas) não são soluções válidas. Olhamos para o banco da seleção nacional e quem tem personalidade para assumir a titularidade?
É natural que quem nasceu neste tempo em que a internet é o centro da nossa vida e no qual os sites, blogues, twitters, Facebook e Instagram nos baralham a espuma dos dias, não faça ideia do que foi Eusébio para um Portugal bisonho e pacóvio, fechado na escuridão de uma ditadura mazomba que se orgulhava da solidão, facho a arder por todo o mundo que teve oportunidade de o ver, no seu auge maior do que o país, mais ainda do que Ronaldo é hoje maior do que as três sílabas de O’Neill que não serão mais de plástico, para ser mais barato, porque o plástico passou a ser um inimigo público, mas vá lá de esferovite ou algo que o valha. Fascinámo-nos, embasbacados, com uma baba bovina a cair-nos do lábio inferior, como os personagens de Nelson Rodrigues, pelo entusiasmo com que, de um momento para o outro, gente de todo o planeta, do sopé das montanhas do_Pamir às alturas vetustas de Machu Picchu, viam a seleção nacional, vestindo a sua camisola nos grandes torneios, todas com o número 7, imagine-se. Embevecemo-nos pelo interesse da imprensa internacional que nos segue ainda a par e passo com os seus fotógrafos e repórteres, mas essa é uma realidade que já se vivia quando Figo, Rui_Costa, Paulo Sousa, João Pinto e Sérgio Conceição sentiram a dor azul da França no Euro-2000. Estamos cegos se julgamos que, após o abandono de Ronaldo, ainda seremos vistos da mesma forma. Estamos cegos quando não percebemos que o título de 2016 nos caiu no colo sem que verdadeiramente o justificássemos. Continuaremos cegos se não percebermos que, se com equipas com muito mais classe do que esta não ganhámos, não serão estes, os tais melhores dos melhores, a ganhar alguma coisa. Não é preciso ser Nostradamus para adivinhar que o futuro não promete nada de especialmente bom.