1. Um amigo de longa data, advogado distinto, convidou-me, recentemente, para assistir à cerimónia de entrega da «medalha de honra» com que iria ser agraciado pela Ordem dos Advogados.
Como, além da já velha amizade que a ele me liga, creio que a Justiça só ganha, realmente, em ter e reconhecer os bons profissionais que existem em cada uma das profissões forenses, acedi, com gosto, ao convite honroso que me dirigiu para assistir a tal homenagem.
A cerimónia iniciou-se e findou, como é costume agora suceder, com discursos bem feitos e alinhados, transmitindo, contudo, todos eles várias opiniões críticas e recados sobre a atual situação da Justiça e o papel nela desenvolvido pela Ordem dos Advogados.
Na assistência, ouvindo as diversas e, neste caso, ponderadas mensagens, ia meditando sobre a razão de ser de tal hábito, que se iniciou, suponho, há alguns anos já, nas cerimónias oficiais de abertura do ano judicial.
Nestas, o discurso relatorial inicial de cada setor da Justiça converteu-se, entretanto, num discurso reivindicativo, procurando, ainda, os distintos representantes dos seus diferentes sectores e órgãos descartar responsabilidades próprias e, se possível, endossá-las aos governantes e aos outros profissionais.
Nada tenho, como julgo ser óbvio, contra a expressão pública de críticas ao funcionamento das instituições judiciárias, ou ao trabalho dos que as integram, assim como, às orientações dos que a ela presidem e às políticas que lhes traçam o caminho e abrem o destino.
Importa é que elas sejam claras, diretas e fundamentadas em factos e não, como é hoje habitual, em meras comoções provocadas, as mais das vezes, por mágoas ou ressentimentos pessoais.
A expressão pública das análises dos problemas existentes, quando bem sustentada, ou mesmo quando meramente informativa, tem sempre a virtualidade de poder ajudar a corrigir e, assim, a melhorar o estado das coisas.
Mas, enquanto assistia a esta última cerimónia, inicialmente sem nenhuma reflexão sobre o modo já usual como tais discursos iam e vão sendo feitos um pouco em toda a parte, fui, de repente, sobressaltado por algumas dúvidas.
Como seria possível que o que ali ia ouvindo tendesse a transmitir, sobretudo, o lado negativo e sombrio da realidade?
Mais; seria esse o único caminho para corrigir o que deveria ser corrigido?
Ora, acontecia que, vindos de longe, nos havíamos reunido todos naquela enorme sala para, precisamente, homenagear e distinguir um conjunto de advogados que se haviam destacado ao longo da vida pelo seu empenho e pela excelência do seu mister em prol da Justiça e dos cidadãos.
Isso só poderia significar, portanto, que havia aspetos positivos que importava evidenciar também; que havia um outro lado da história e da vida forense, como era a daqueles advogados, que sempre tendo trabalhado na Justiça e para ela, merecia ser comunicado e enfatizado, publicamente, como muito positivo.
Porquê, então, o teor marcadamente negativista das intervenções introdutórias; não teriam os oradores possibilidades de exprimir as suas queixas num outro momento e, porventura, num outro palco mais adequado?
Aconteceu, ainda, que, no decurso da entrega das medalhas de honra aos homenageados, não se explicou, em momento algum, a razão da, certamente, merecida homenagem feita a cada um deles.
Na verdade, ficámos todos sem saber quais os atos e feitos destacados que originaram a entrega das medalhas que lhes reconheciam o mérito.
E, estou certo, teria valido a pena sabê-lo – ia eu pensando com os meus botões enquanto a cerimónia decorria – pois tais feitos constituiriam, com certeza, uma inspiração para os mais jovens advogados, que eram, de resto, a maioria dos que enchiam a sala.
Se assim não fosse, não teria sentido homenageá-los publicamente, como aconteceu, com o aplauso geral da assistência.
O que hoje sucede – e isso não tem a ver especialmente com a advocacia ou com as outras profissões jurídicas – é que muito pouco do que é positivo e inspirador é evidenciado e reconhecido ante a sociedade.
2. Vislumbrei, então – creio eu – uma das razões por que as forças antidemocráticas e hostis ao 25 de Abril progridem, agora, eleitoralmente, com a maior facilidade.
Isso acontece, em grande parte, devido ao próprio discurso imprudente e parcial de muitos democratas.
Hoje, os melhores aliados dos que contestam radicalmente o regime democrático-constitucional em que vivemos encontram-se, contraditoriamente, entre os mais destacados democratas.
São eles que, não se cansando de empolar as várias razões de queixa que – com razão, ou sem ela – os afligem, tudo e todos denigrem.
Os que fazem tais discursos, são, em geral, parcos – muito parcos mesmo – no elogio ao que de bom foi e continua a ser alcançado todos os dias pelos que atuam em prol do bem comum.
Em rigor, os saudosos do antigo regime e os reacionários de todos os tipos, não precisam, sequer, de inventar motivos de crítica à Democracia e ao regime construído com grande esforço, muita dedicação e desinteresse pessoal por parte de inúmeros cidadãos.
Basta-lhes citarem as críticas azedas – por vezes mal informadas ou, pior, rancorosamente inspiradas – que, constantemente, muitos democratas renomados lhe fazem, de maneira ensurdecedora, e em todos os lados e ocasiões que encontram.
A título de exemplo – e para não incorrer no vício de repetir abstrações – cito aqui o debate ocorrido na manhã de dia 22 deste mês, na Antena 1, da RDP.
Em tal programa radiofónico, a par de intervenções críticas, mas ponderadas, dos outros participantes, houve uma que se destacou negativamente pelo tom destemperado e por estar eivada de um notório corporativismo radical e de um complexo de superioridade, algo amargo e belicoso, que apenas admitia virtude no setor que representava no painel.
Tal empolada intervenção evidenciou, afinal, um desconhecimento profundo de algumas das realidades históricas subjacentes à discussão, tentando justificar, de qualquer jeito, a muito original, mas já pouco organizada, visão das coisas que tal interveniente sustentava.
As divergências que uns, genuinamente, possam ter em relação à atuação concreta dos outros não raro se convertem, assim, numa crítica – frequentemente ignorante, vaga e generalista – ao próprio regime democrático e às instituições que este, cautelosamente, desenhou.
Quase sempre em função de experiências pessoais mal sucedidas, muitos dos intervenientes no debate público privilegiam, na verdade, uma visão profundamente ressentida e pouco objetiva do funcionamento das instituições constitucionais.
Por isso e porque, também, temem atuar por si sós, organizam e juntam-se em frondas que julgam ajudar a legitimar melhor os ataques dissolventes e vindicativos que, alguns deles, congeminaram em momentos menos reflexivos e de pura agrura pessoal.
A sua visão crítica do objeto alvo da sua ira, raramente vai ao ponto de identificar as causas e os causadores concretos dos desvios e erros que acreditam ter ocorrido.
Se o fizessem, teriam, porventura, surpresas pouco agradáveis.
Desatendem, assim, por norma, as responsabilidades pessoais concretas dos que agiram negativamente, evitando, portanto, o contraditório dos indiretamente visados, mas nunca nomeados.
Parece-lhes mais seguro dirigir a crítica para o ente abstrato e realmente irresponsabilizável que dá corpo e nome a uma instituição.
Deste modo, por meramente impressiva, tal crítica perde, naturalmente, objetividade, e arrisca carregar consigo – na enxurrada desordenada das investidas que provoca – os próprios princípios e valores que a legitimam na arquitetura da Democracia e do Estado de Direito.
Por tal razão – seja essa, ou não a sua intenção –, tal discurso negativista converte-se num eficaz agente corrosivo da vida democrática e não num fator de retificação dos seus erros.
Menos ainda contribui – como seria desejável e tonificador para a Democracia – como dinamizador do empenhamento cívico dos muitos servidores da República que, sem alarde e desinteressadamente, agem, todos os dias, com a diligência e a correção exigida em defesa do bem comum.
O referido criticismo não serve, pois, sequer, de verdadeiro fator de vigilância e alerta aos que, circunstancialmente, exercem mal ou abusivamente as suas competências legais e os poderes que as leis lhes outorgam.
Serve, sim, pelo contrário, de combustível indispensável aos que estão radicalmente contra a Democracia e a querem denegrir aos olhos dos cidadãos.
O tom, por vezes, comicieiro e, bem assim, o conteúdo – em geral, pouco aprofundado – de tais discursos fragmentários oferecem, com efeito, oportunidades únicas aos que abominam o regime democrático.
A estes últimos basta, pois, citarem as levianas, ácidas e mesmo difamantes, verberações que alguns democratas se encarregam de fazer em relação às instituições que são indispensáveis ao funcionamento do seu país.
Por outro lado, é hoje raro ouvir discursos que, indicando diretamente as falhas, as causas e os responsáveis destas, apontem, em simultâneo, soluções realistas, simples, eficazes, mas, mesmo assim, respeitadoras dos princípios do Estado de Direito.
É, no entanto, de tais propostas que mais se necessita para ultrapassar – ainda hoje, se possível – os problemas com que uma sociedade, frágil como a nossa, se depara, dia-após -dia, em várias áreas.
Os cidadãos estão, por isso, já fartos das eternamente invocadas e, afinal, nunca concluídas «reformas estruturais».
Suspeitam, com razão, poderem vir a traduzir-se – como acontece sempre que ouvem tal eufemismo neoliberal – num incremento, não da eficácia das instituições públicas, mas, precisamente, de novos instrumentos propiciatórios das, já hoje, intoleráveis desigualdades sociais e económicas existentes.
Falar verdade, ser objetivo e apresentar soluções geralmente aceitáveis e que estejam, de facto, ao alcance do país concretizar é, pois, o único discurso crítico de que a Democracia necessita com urgência.
Só um tal discurso, simples e propositivo, pode isolar o criticismo hipócrita e derrotista, bem como a demagogia fácil do novo populismo e a dos que nunca aceitaram a Democracia constitucional construída na sequência da Revolução do 25 de Abril.