Os infortúnios da inteligência (I)


As boas soluções normativas, no plano internacional, padecem das mesmas limitações insinuadas por Bismark quando, referindo-se à produção legislativa prussiana, apontava à indústria da salsicharia.


Procurando generalizar a metáfora, tentemos a comparação entre a produção normativa da União Europeia (UE), crismada como democrática por envolver um Parlamento dotado de poderes de co-decisão legislativa na maioria das matérias, e a produção de convenções internacionais por parte de organizações internacionais (OI’s) de modelo intergovernamental. Em tese a UE tem uma capacidade de resposta mais rápida do que a de uma OI clássica, podendo aprovar em poucos meses um texto normativo, o que compara com os anos que uma conferência diplomática demora a produzir um texto convencional que depois terá de obter um número razoável de vinculações para produzir efeitos no plano internacional. A suposta rapidez da UE depende da Comissão Europeia, que detém o monopólio da iniciativa legislativa. Tempos houve em que a Comissão era reaça a iniciativas demagógicas e reduzia a agenda legislativa a propostas minimamente úteis, razoáveis e viáveis. Mesmo com uma Comissão complacente em relação a sugestões externas de normas-panfleto, a proposta pode morrer às mãos de uma minoria de bloqueio no Conselho ou pode ser aí “aguada” ou baptizada com outros líquidos no Parlamento Europeu, surgindo o resultado final, tardiamente, sob a forma de um ornitorrinco legislativo, inaplicável por contraditório e com reduzida adesão à realidade. Se for escolhida a forma de Directiva a transposição pode ser lenta, parcial e errada, atrasando a desejada harmonização legislativa.

            Do ponto de vista técnico as convenções internacionais produzidas por OI’s clássicas têm, normalmente, elevada qualidade e coerência e oferecem soluções normativas razoáveis. Aos Estados que se vinculem é quase sempre possível aplicá-las a título provisório, antecipando o efeito da entrada em vigor da convenção na ordem jurídica internacional. Em áreas técnicas esta é uma solução frequente e que permite à OI’s tradicionais manterem-se competitivas face à suposta maior rapidez do procedimento normativo da UE.

            A “present big thing”, apodada como inteligência artificial (IA), é o mais recente objecto de concorrência entre standards normativos. Todos prometem regulá-la, em graus diferentes, mas só um standard se tornará universal. Pela ONU a divisão entre os “bons” e os “maus” utilizadores da IA não permite que surja uma convenção multilateral geral. Anunciam-se pias intenções de cooperação (“Artificial Intelligence for Good platform”) e slogans simpáticos em matéria de protecção de direitos humanos (“Protect, Respect and Remedy”) recentemente compilados na Resolução 78/625, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 21 de Março.

            Pelos EUA o Presidente Biden aprovou no final de 2023 uma Executive Order instruindo as agências federais no sentido de fiscalizarem os usos e abusos da IA. A indústria avançou em força para o Congresso procurando fazer aprovar legislação que mantenha ao longe os perigosos reguladores. Talvez não seja preciso tanto na  medida em que o Supreme Court está fortemente inclinado para decapitar a sua jurisprudência que concede às agências federais uma margem razoável de discricionariedade na concretização do desenho legislativo aprovado pelo Congresso (Chevron v. Natural Resources Defense Council, 467 US 837 (1984). Se for esta a decisão do SCOTUS a mera ausência de legislação deixará as grandes empresas criadoras e utilizadoras de IA livres de peias regulatórias com base nos EUA.

Os infortúnios da inteligência (I)


As boas soluções normativas, no plano internacional, padecem das mesmas limitações insinuadas por Bismark quando, referindo-se à produção legislativa prussiana, apontava à indústria da salsicharia.


Procurando generalizar a metáfora, tentemos a comparação entre a produção normativa da União Europeia (UE), crismada como democrática por envolver um Parlamento dotado de poderes de co-decisão legislativa na maioria das matérias, e a produção de convenções internacionais por parte de organizações internacionais (OI’s) de modelo intergovernamental. Em tese a UE tem uma capacidade de resposta mais rápida do que a de uma OI clássica, podendo aprovar em poucos meses um texto normativo, o que compara com os anos que uma conferência diplomática demora a produzir um texto convencional que depois terá de obter um número razoável de vinculações para produzir efeitos no plano internacional. A suposta rapidez da UE depende da Comissão Europeia, que detém o monopólio da iniciativa legislativa. Tempos houve em que a Comissão era reaça a iniciativas demagógicas e reduzia a agenda legislativa a propostas minimamente úteis, razoáveis e viáveis. Mesmo com uma Comissão complacente em relação a sugestões externas de normas-panfleto, a proposta pode morrer às mãos de uma minoria de bloqueio no Conselho ou pode ser aí “aguada” ou baptizada com outros líquidos no Parlamento Europeu, surgindo o resultado final, tardiamente, sob a forma de um ornitorrinco legislativo, inaplicável por contraditório e com reduzida adesão à realidade. Se for escolhida a forma de Directiva a transposição pode ser lenta, parcial e errada, atrasando a desejada harmonização legislativa.

            Do ponto de vista técnico as convenções internacionais produzidas por OI’s clássicas têm, normalmente, elevada qualidade e coerência e oferecem soluções normativas razoáveis. Aos Estados que se vinculem é quase sempre possível aplicá-las a título provisório, antecipando o efeito da entrada em vigor da convenção na ordem jurídica internacional. Em áreas técnicas esta é uma solução frequente e que permite à OI’s tradicionais manterem-se competitivas face à suposta maior rapidez do procedimento normativo da UE.

            A “present big thing”, apodada como inteligência artificial (IA), é o mais recente objecto de concorrência entre standards normativos. Todos prometem regulá-la, em graus diferentes, mas só um standard se tornará universal. Pela ONU a divisão entre os “bons” e os “maus” utilizadores da IA não permite que surja uma convenção multilateral geral. Anunciam-se pias intenções de cooperação (“Artificial Intelligence for Good platform”) e slogans simpáticos em matéria de protecção de direitos humanos (“Protect, Respect and Remedy”) recentemente compilados na Resolução 78/625, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 21 de Março.

            Pelos EUA o Presidente Biden aprovou no final de 2023 uma Executive Order instruindo as agências federais no sentido de fiscalizarem os usos e abusos da IA. A indústria avançou em força para o Congresso procurando fazer aprovar legislação que mantenha ao longe os perigosos reguladores. Talvez não seja preciso tanto na  medida em que o Supreme Court está fortemente inclinado para decapitar a sua jurisprudência que concede às agências federais uma margem razoável de discricionariedade na concretização do desenho legislativo aprovado pelo Congresso (Chevron v. Natural Resources Defense Council, 467 US 837 (1984). Se for esta a decisão do SCOTUS a mera ausência de legislação deixará as grandes empresas criadoras e utilizadoras de IA livres de peias regulatórias com base nos EUA.