A trigonometria política já permitiu governos ditos de chanceler em que o executivo, gozando de maioria parlamentar, prevalece sobre o Parlamento, reduzido à aprovação ritual dos actos constitucionalmente indelegáveis. Governos minoritários têm tido sortes diversas, em função da respectiva habilidade negocial: o Governo da geringonça morreu de velho no final da legislatura, o primeiro Governo de Cavaco Silva caiu para renascer das cinzas em maioria absoluta. Um governo minoritário corre o risco de se ver obnubilado e substituído por um governo de assembleia, com o Parlamento a sobrepor-se ao executivo. Coligações já as houve formais e pré-eleitorais (AD, FRS, APU-CDU) e pós eleitorais (PS com CDS, o Bloco Central e PSD com CDS em 2011) e envergonhadas, de papel passado – por imposição de Cavaco Silva – mas escondido, como foi a geringonça.
No primeiro sistema partidário português (até às eleições de 2019) já todos conviveram com quase todos, de forma assumida ou em mancebia. Por consumar ficaram apenas as coligações cruzadas entre PSD e CDS, por um lado, e PCP e BE, por outro. A implosão do sistema partidário português, começada em 2019, continuada em 2022 e aprofundada em 2024, ao ter atomizado o voto à direita em benefício do Chega e da Iniciativa Liberal, oferece novas oportunidades à plasticidade do sistema de governo.
Um sistema partidário excessivamente fragmentado, cruzado com um reforço dos partidos extremistas, pode conduzir a uma situação em que os partidos políticos com assento parlamentar têm de se apagar perante um governo de base não partidária. Sob a Constituição de 1976 foi feito um ensaio de governo não partidário, sem expresso apoio parlamentar. Por três vezes o Presidente Eanes promoveu governos de iniciativa presidencial, com Primeiros Ministros que não gozavam de apoio parlamentar (Nobre da Costa, Mota Pinto e Maria de Lurdes Pintassilgo). A experiência naufragou mais por culpa do conflito aberto entre o Presidente e a esmagadora maioria do Parlamento (PS, PSD, CDS) e não necessariamente pela menor bondade de um governo técnico que pudesse “fazer o que tem que ser feito” numa situação de instabilidade político-parlamentar. A possibilidade de Mário Centeno ter sucedido, sem novas eleições, a António Costa não configuraria um governo técnico, não só pela natureza do prometido Primeiro Ministro, como também pela provável origem partidária da maioria dos restantes membros do governo.
O contraponto entre governos políticos (de base partidária) e governos técnicos (ou de técnicos) tem tradição em Itália (Ciampi, 1993-94, Dini, 1995-96, Monti, 2011-2013, Draghi 2021-22) mas nos últimos 30 anos também ocorreu na Roménia, Bulgária, Hungria e República Checa. Desde quarta-feira à noite é provável que também na Holanda surja um governo técnico, com um Primeiro Ministro não partidário e, garantidamente, com os líderes dos quatro partidos da coligação a não integrarem o futuro governo. Gert Wilders, vencedor das eleições, não conseguiu, ao fim de seis meses de negociação, uma maioria parlamentar para se tornar Primeiro Ministro. Fará agora o sacrifício de governar através do apoio parlamentar.
Em Portugal não é impossível que das próximas eleições, mesmo sem alastrar da guerra na Europa, possa sair um governo técnico ou, no mínimo, um governo de que não façam parte os líderes partidários que em conjunto tenham uma maioria parlamentar.